Já conhecemos o ónus nacional da palavra saudade. Tão iterativa e tão proclamada que tanto nos caracteriza como macro-cultura, bem como pessoas nas nossas singularidades. Ter saudades é a projecção no presente daquilo que o passado não nos vai poder dar mais – cujo sustentáculo talvez seja o mítico adágio,“nunca se volta ao lugar onde se foi feliz”.
Entretanto, em Portugal, uma artista rebelou-se contra este paradigma da sofreguidão do outrora, do acontecido, do jamais passível de ser vivido de novo. Numa primeira fase, com as festividades do coração, arrasou no Festival da Eurovisão, alcançando a final e munindo-se da sua energia contagiante e da sua performance ímpar. Agora, com uma verdadeira mensagem social, a cantora regressa – do lugar onde foi feliz, pudera! – com os mesmos tons de vivacidade, mas uma letra diferente. Alguém já ouviu falar de Mimicat e do seu novo tema Vais Ter Saudades?
Com videoclipe lançado a 21 de Julho, Mimicat aproveitou o Verão para nos trazer sorrisos, tons de voz cuidadosamente colocados e uma agenda promotora da igualdade e do respeito entre homens e mulheres. A falta de comunicação está na origem do mote que enquadra a música, servindo de pontapé de partida para a mesma.
A troca de ângulos cénicos aquando da discussão do casal no início do vídeo permite-nos detectar elementos de uma casa “tipicamente” portuguesa. A presença de uma cruz na parede ao fundo, por detrás da cantora, é um exemplo dessa portugalidade na qual ainda se encontram enraizados valores religiosos de matriz conservadora que justificam as disparidades de género.
Logo depois do conflito reparamos também que chegam mais quatro mulheres a casa, entrando na cozinha, e, igualmente, mais quatro homens que se deslocam para a sala. A divisão dentro do espaço privado sempre foi algo que deu forma e sentido à visão machista das divisões sexuais das tarefas domésticas – a sala surge como o local de lazer para o homem poder descansar do seu trabalho exterior (quando este existe), enquanto a cozinha é o sítio de labor afincado onde a mulher nunca tem descanso sem antes satisfazer a vontade do sexo masculino.
Cada verso que Mimicat musicaliza contraria esta mundividência tradicionalista, apelando ao amor-próprio, à autonomia e à sensação de perda que o homem sentirá quando a mulher se revoltar contra os pilares do sistema patriarcal. A dança e a música são um modo de escapar aos constrangimentos do sistema, onde o som e o corpo se movimentam activamente numa libertação sociopolítica. É assim que o entretenimento musical se transforma numa prática de cidadania: ao cantarem e ao dançarem as mulheres transformam a realidade que as incorpora, tornando-se não aceitadoras mas antes criadoras de mundos.
Com o avanço do vídeo percebemos cada vez mais o carácter animalesco dos homens que nada mais fazem senão esperar colher os frutos do trabalho feminino: a refeição chega à mesa, as mulheres rezam (somente elas, o que nos possibilita questionar onde ficou a crença no divino do lado do homem que, supostamente, é tão importante para a manutenção da ordem no universo) e eles, vorazmente, atacam a comida existente, afastando a mulher do que ela própria criou e não lhe deixando nada. Contra isso a protagonista utiliza uma solução drástica: o veneno. A toxicidade da substância é usada enquanto metáfora daquilo que é necessário combater do outro lado: a toxicidade da masculinidade desigualitária e incapaz de ver na mulher um ser por inteiro e por igual.
Por tudo isto, Vais Ter Saudades é do melhor que Mimicat nos poderia ter proporcionado. Através do vídeo e da canção a cantautora retrata-nos vários problemas sociais ao nível do género, da religião ou mesmo da exploração dos trabalhadores (neste caso, das trabalhadoras). Mas esta mensagem só tem sucesso porque a convicção, a elegância e a qualidade melodiosa que Mimicat lhe imprimiu permitem alcançar um público mais vasto e consciencializá-lo para o valor da cultura e dos direitos humanos.
“A arte não consiste mais em um objecto para você olhar, achar bonito, mas para uma preparação para a vida”, já afirmava a pintora e escultora brasileira Lygia Clark. Torço para que Mimicat tenha um sucesso arrasador numa sociedade em que todos caminhamos sempre num chão de paradoxos, entre a celeridade do progressismo e a rapidez do retrocesso – e onde o lugar feliz parece sempre possível, mas adiado.