Coração: decifrar as interações entre RNA circulares e proteínas na fibrilação auricular
Uma vez que os RNA circulares estão presentes em todos os tecidos humanos, as descobertas resultantes deste trabalho podem ter impacto na identificação de alvos terapêuticos em arritmias cardíacas.
Nos últimos anos, o nosso laboratório tem-se dedicado ao estudo dos mecanismos moleculares envolvidos na fibrilação auricular, um problema cardíaco prevalente nos países desenvolvidos, que se caracteriza por sinais elétricos aberrantes que causam arritmias. No meu estudo, tenho explorado o papel das interações entre os RNA circulares e proteínas na patogénese da fibrilação auricular.
Ao longo das décadas, a biotecnologia tem desempenhado um papel fundamental no conhecimento de certas doenças humanas. A descodificação do genoma humano em 2003 abriu caminhos para a investigação da expressão dos genes. Embora quase todos nós estejamos familiarizados com o DNA [ADN, em português], o famoso ácido desoxirribonucleico que funciona como “a receita” genética que permite a formação do nosso organismo, poucos estão familiarizados com o RNA [ou ARN].
O RNA desempenha um papel fundamental na expressão génica. Hoje sabemos que os RNA podem ter função estrutural ou participar na produção de proteínas. Além disso, há uma ampla variedade de RNA não codificantes [de proteínas] que regulam vias metabólicas nas células, entre os quais se encontram os RNA circulares. Dependendo do gene de origem, estes RNA podem ter diversas funções, participando na síntese de novos RNA codificantes ou regulando a disponibilidade de determinadas moléculas no citoplasma, como é o caso dos micro-RNA ou de determinadas proteínas que se ligam a RNA.
De facto, num estudo anterior, o nosso grupo verificou que existe uma co-regulação sincronística entre a expressão dos RNA circulares e micro-RNA em pacientes com fibrilação auricular. Com esse estudo chegámos à conclusão de que este fenómeno é responsável pela progressão da fibrilação auricular de um estágio mais moderado para uma forma mais agressiva da doença.
Biopsias no Hospital de Santa Maria
Este resultado impulsionou o nascimento do meu projeto de doutoramento. Tendo em conta que os RNA circulares conseguem interagir com proteínas, ressaltou a questão: qual é o impacto das interações entre os RNA circulares e as proteínas de ligação a RNA no contexto da fibrilação auricular?
Assim, analisando os RNA circulares de biopsias de pacientes com fibrilação auricular do Hospital de Santa Maria (em Lisboa), procurámos motivos de ligação a RNA onde as proteínas se pudessem ligar. Mas o que é que são motivos de ligação?
Podemos fazer uma analogia entre o RNA circular e um parque de estacionamento privado, onde as proteínas são os carros que desejam estacionar. Nem todos os carros têm acesso ao parque, apenas alguns.
Assim como os carros “sabem” onde estacionar, as proteínas também possuem marcas específicas no RNA que indicam seu local de interação. Ao investigar os motivos de ligação em RNA circulares sobre-expressos em pacientes com fibrilação, podemos deduzir que proteínas interagem mais frequentemente com esses RNA circulares.
De momento, estou a utilizar um modelo celular cardíaco para validar as interações de RNA circular-proteína que encontrei na nossa coorte de pacientes. Em breve e utilizando técnicas laboratoriais, irei simular a disrupção de algumas dessas interações, “forçando” a diminuição da expressão de determinados RNA circulares e verificando que modificações funcionais as células experimentam na sua ausência.
Uma vez que os RNA circulares estão presentes em todos os tecidos e órgãos do ser humano, penso que as descobertas científicas resultantes deste trabalho terão um impacto significativo na identificação de novos alvos terapêuticos e no desenvolvimento de abordagens mais eficazes para o tratamento da fibrilação auricular. Compreender estes mecanismos também poderá contribuir para o melhoramento dos prognósticos e da própria qualidade de vida dos pacientes, contribuindo significativamente na diminuição dos riscos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Aluno de doutoramento da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa