Arte contemporânea e território: panorâmica e desafios actuais
Com a abertura do primeiro concurso de apoio financeiro à Rede Portuguesa de Arte Contemporânea, importa identificar os principais desafios desta nova rede cultural.
O processo de adesão à Rede Portuguesa de Arte Contemporânea, encetado em finais de 2022, não alterou a percepção já existente quanto à distribuição das entidades ligadas à arte contemporânea no território nacional. Quer os mapeamentos realizados nos dois anos anteriores pela tutela da cultura, quer os resultados dos últimos concursos da Direcção-Geral das Artes destinados ao sector das artes visuais (apoio sustentado para 2023-2026 e apoio a projectos para 2023), evidenciaram várias tónicas comuns: a visível multiplicidade e heterogeneidade de espaços, dinâmicas, escalas e recursos existentes a nível nacional; uma claríssima concentração territorial das instituições e demais agentes (e das suas respectivas candidaturas) na Área Metropolitana de Lisboa, Centro e Norte; e o facto de muitas entidades não possuírem colecções (próprias ou cedidas/protocoladas), algo transversal a todo o país.
Nesta medida, dos 66 espaços já incluídos na RPAC – na maioria de propriedade e/ou gestão municipal, além de 9 fundações e 20 estruturas de cariz associativo – apenas 12 estão sediados no Alentejo, Algarve e ilhas autónomas, o que confirma a irregular e mais rarefeita cobertura deste ecossistema no território nacional – até quando cotejada com a geografia da rede de teatros, mais distribuída e equitativa.
Um dos desafios da RPAC prende-se com a maior valorização dos projectos expositivos monográficos, até porque o desiderato da circulação tende, muitas vezes, a colocar a tónica nas exposições colectivas. Há em Portugal uma deficitária disseminação de projectos artísticos monográficos ou duais, os quais se revelam cruciais para um efectivo desenvolvimento das carreiras dos artistas e curadores, e para a produção de conhecimento (especializado e de sensibilização de públicos) sobre o labor dos criadores.
Será importante, nesta linha, que a rede apoie projectos que sejam apresentados em todas as entidades que os desenvolvem, isto também para que as propostas de itinerância exportadas pelas instituições de maior dimensão não constituam a realidade dominante na RPAC. E que haja igualmente uma preocupação em projectar extensões desses projectos em parceria para uma dimensão internacional. Não é demais frisar que os projectos a desenvolver e a apoiar no seio da rede devem fomentar uma efectiva cooperação entre os seus membros (e as respectivas equipas), sempre num estreito alinhamento com as especificidades de cada espaço e do seu território de implantação.
A adopção de conceitos curatoriais partilhados a partir da obra de um criador, em que cada espaço contribui com obras das suas colecções para esse fito, promoverá exposições alargadas no território, irrigando o ecossistema com trabalhos sempre novos que multiplicam as visões sobre os artistas. Isto permite, por um lado, uma ligação mais directa dos projectos expositivos às comunidades e, por outro, que curadores e directores de entidades mais pequenas tenham a oportunidade de trabalhar com grandes instituições e em escala.
Urge ainda uma atenção especial à promoção e difusão do trabalho das camadas artísticas jovens (emergentes, pós-emergentes, já com algum reconhecimento), dos recém-formados, integrando-os nos diálogos da contemporaneidade (naturalmente global e internacional) e sublinhando os traços e idiossincrasias da produção artística portuguesa. É relevante valorizar positivamente as instituições que na sua programação cultural integrem projectos que contemplam este eixo específico de intervenção.
A criação de (mais e regulares) ligações consistentes com o meio universitário, nos campos da curadoria e conservação, carece igualmente de aprofundamento. Daí a importância de, por um lado, se estabelecerem protocolos entre a rede e os cursos de curadoria e conservação, e, por outro, se fomentar a sua ligação a programas de investigação e de mentoria em arte contemporânea – algo benéfico quer para as instituições desta área quer para os contextos formativos. Essas parcerias estratégicas deverão estender-se aos campos do design, comunicação, marketing, história, museologia, ciência, tecnologia e gestão documental.
Espera-se ainda que esta nova rede fomente uma maior capacitação e profissionalização do sector das artes visuais em contextos institucionais (onde existem acentuadas lacunas, mormente fora das metrópoles lisboeta e portuense), implementando programas nessa linha (à imagem, aliás, do que já acontece com a rede de teatros), e que explore também porosidades e transversalidades com o segmento do turismo de arte, o que pode contribuir para uma maior alavancagem, fluxo económico e atractividade em torno da arte contemporânea.
Por fim, é essencial que a RPAC contribua para uma aturada e urgente reflexão-acção em torno da questão da coesão territorial. Se é um facto que a rede vai actuar no desigual universo já existente (os equipamentos aderentes e respectivos planos programáticos), é preciso também não descurar um olhar para o futuro e para o que não existe e seu potencial imanente (a carência de espaços institucionais e eventos de referência, com expressão regional e nacional, em determinadas geografias, por exemplo), o que pressuporá um tipo de intervenção mais estrutural e musculado, recorrendo-se a mecanismos específicos de discriminação positiva a nível territorial e a parcerias estratégicas fortes entre a administração central, as comunidades inter-municipais, as autarquias e inclusive o sector privado, de modo a garantir continuidade, sustentabilidade e escala a esses projectos-âncora.
Recorde-se que, das sete NUTS II existentes em Portugal, há, pelo menos, quatro (Alentejo, Algarve e ilhas) que, em termos globais e não obstante algumas excepções relevantes que são conhecidas, denotam, no que se refere à arte contemporânea, um défice relevante em termos de espaços institucionais sólidos e robustos (museus e centros de arte públicos), de recursos humanos especializados, de organizações artísticas independentes devidamente estruturadas e de vincada implantação local, e também de uma articulação mais continuada e transformadora entre as instâncias da criação, programação e investigação/ensino.
É premente aprofundar e ir mais além na relação de determinados territórios-comunidades com o universo das artes visuais e seus cruzamentos disciplinares, desmistificando certos ambientes institucionais, desconstruindo estereótipos, arriscando novas abordagens criativas, desenhando intersecções inesperadas, refrescando a máquina comunicacional (estratégias, canais, suportes, linguagens), e apostando mais numa dimensão absolutamente crucial para este (exigente) universo em particular: a mediação cultural e artística. Invista-se mais ambiciosamente na democratização do acesso à arte contemporânea e à respectiva formação e educação artística, não só em termos geográficos, como nos planos etário e socioeconómico, promovendo-se a facilitação, a proximidade, a inclusão e a participação a pensar nos diferentes públicos.
Ancorada no seu mundo “silencioso”, que a arte contemporânea possa, como diria Émile Zola, viver em voz alta.