Modas à parte, luxo é viver neste planeta
Recuperar práticas de antigamente, não apenas porque eram sustentáveis, mas, sobretudo, porque não temos dinheiro para mais, é outra das tendências do estilo de vida sustentável.
Se luxo é vestir o que se quer, e o que se gosta, então nem todos nos podemos dar a esse luxo. Uns porque, em teoria, não podem vestir o que querem — fruto de convenções sociais ou imposições profissionais —, outros porque, entre o que querem vestir e o que podem pagar, está um luxo ao qual não podem chegar.
Estive na Cidade do Zero, aquela que me parece ser, para já, a cidade mais sustentável que conheço. Esta “cidade” esteve no CCB durante o fim-de-semana de 16 e 17 de Setembro, mostrando o que temos em Portugal ao nível da sustentabilidade social e ambiental. Entre palestras e discussões, houve também espaço para um mercado.
Sem falsas modéstias, posso afirmar que já conhecia a maior parte das marcas no mercado, especialmente de moda, facto que me orgulha, mas que me faz pensar, sobretudo, no preço. O que me leva às próximas questões: terão estas marcas um preço elevado ou sou eu que não lhes dou valor? Será o preço o factor impeditivo ou, antes, a falência financeira de um país com salários cada vez mais baixos em relação ao custo de vida? Será uma questão de preço ou de identificação com os modelos e, finalmente, será que não posso comprar pelo preço ou porque não preciso, no momento, de comprar (mais) roupa?
As marcas sustentáveis em Portugal (e no mundo)
Estavam muitas marcas de moda sustentável no mercado da Cidade do Zero. Na moda, além dos cuidados de protecção do meio ambiente, estas marcas são conhecidas (e reconhecidas) pela transparência e sustentabilidade social. Por outras palavras, quer dizer que não estão a explorar trabalhadores algures na Ásia e que produzem localmente. Têm costureiras portuguesas e métodos de produção menos industrializados. Demoram mais tempo a produzir, produzem com mais cuidado e as peças, por consequência, têm melhor corte e acabamento. Mas têm também menor escala e pagam salários honestos, aumentando o custo do produto final. Lamento, não há milagres.
A indústria da moda é sobretudo feminina: produzida por e para mulheres. Estas mulheres são atingidas por uma espiral de baixo custo de produção e rápida substituição. Umas, pela ausência de opções, trabalham na produção. Outras, pela pressão social, compram mais do que deviam. Ou precisam. Poderíamos ser imunes à pressão social e ao consumismo. Infelizmente, não somos.
Há 80% de mulheres em países em vias de desenvolvimento que trabalham para outras que, do outro lado mundo, em países (supostamente) desenvolvidos, compram a roupa que as primeiras fazem, sem condições de segurança no trabalho e em absoluta precariedade. O que interessa isso quando podemos comprar cada vez mais, e cada vez mais barato porque, pasme-se, as grandes multinacionais continuam a aumentar a produção, mesmo não a conseguindo escoar?
Há ainda um outro grupo de pessoas — o problema não discrimina o género — que está a ser engolido por roupa que dá à costa, amontoando-se como entulho impossível de ignorar. O problema é no Sul global, enquanto o Norte mais rico vai descartando o que (já) não quer. Toneladas e toneladas de roupa, muitas vezes sem ter sido usada, e marcas que estão a incinerar outras toneladas que não conseguiram despachar. Por despachar, entenda-se, convencer alguém a comprar.
Apresentar-vos apenas uma ou duas marcas seria injusto para as outras e escrever sobre todas as marcas de moda que estavam na Cidade do Zero ocuparia demasiado tempo. Por isso, prefiro dizer-vos que, de todas, tenho em casa duas marcas, que respeito e admiro, e que conheço melhor porque as suas peças foram oferecidas. Tempos de influência visual, que cativava a atenção — não só das marcas (que me deram a conhecer muito do que se faz na sustentabilidade em Portugal), como de quem acompanhava as publicações no Instagram. Podem saber mais sobre isso de influência visual aqui, ouvir um podcast sobre este tema e conhecer as marcas presentes na Cidade do Zero. As hiperligações abrem numa nova janela: podem carregar para conhecer depois de lerem este artigo, porque hoje falo-vos, uma vez mais, do que vestimos e como vestimos.
Sustentabilidade: será coisa de beto alternativo?
Sobre este tema, sinto que me repito artigo após artigo, ao mesmo tempo que penso que, enquanto alimentarmos uma cultura de consumo selvagem e viciante, teremos um problema em mãos. Já há quem esteja em contra corrente. Em comum, uma abordagem alternativa aos modos de vida.
Os que mais compram são os chamados betos alternativos, ou seja, aqueles com uma apurada consciência social e ambiental, cuja carteira permite vestir os filhos com marcas de roupa feita com algodão bio, produzida localmente e considerando a nossa pegada ambiental. São os que escolhem usar fraldas de pano, detergentes que não poluem, compram a granel, produtos bio, locais e sazonais. Olham ao preço, mas não é isso que determina as suas opções de consumo.
Raramente permitem que no melhor pano caia a nódoa e adoptam a sustentabilidade não apenas como forma de vida, mas quase como religião. É caricatural, mas com um fundo de verdade porque para quem conta tostões até ao final do mês, a opção mais barata será sempre a primeira escolha, mesmo que (já) esteja consciente de que irá sair caro e que tem também maior impacto no planeta.
Quando as pessoas se preocupam em esticar o salário até ao final do mês, pensam menos na roupa que vestem e mais no quanto esta vai custar. Preço. Salários. Custo de vida.
Recuperar práticas de antigamente, não apenas porque eram sustentáveis, mas, sobretudo, porque não temos dinheiro para mais, é outra das tendências do estilo de vida sustentável. O que, no final do dia, é paradoxal, porque, se, por um lado, a falta de dinheiro diminui o consumo, por outro, a médio prazo, tem maior impacto ambiental.
Roupa de pior qualidade tem menor durabilidade e está, quase sempre, presa a uma tendência de moda que tende a ser rapidamente substituída. Por outras palavras, ao final de um ano, quem compra mais barato acaba por comprar mais e, consequentemente, gastar o mesmo ou gastar ainda mais.
São vários tipos de literacia conjugados, um dos maiores problemas em Portugal, associado a um outro problema cultural, que se relaciona com o posicionamento das marcas. E como é esse posicionamento que vai definir a forma como as marcas comunicam, o que acontece é que também as marcas se fecham num determinado nicho.
Andamos a comunicar sustentabilidade para quem já a conhece, para quem sabe a importância de mudarmos rapidamente o nosso estilo de vida e hábitos de consumo. Sobretudo, para quem seguramente, pode pagar, não educando os que poderiam começar a mudar.
A culpa é das grandes marcas?
Nisto de consumo, fomos educados ao contrário. Falo da minha geração e das que me sucedem, criados num aparente desafogo financeiro, financiado a fundo perdido pela União Europeia, na altura a CEE, sem pensar na factura que algum dia haveria de chegar.
Ainda há, em alguns da minha idade, a ténue recordação dos tempos em que a roupa se remendava, que passava entre irmãos e primos, que se comprava para substituir ou em dias de festa. Ninguém comprava roupa nova só porque sim, porque nos apetecia. Nem andávamos a passear nos centros comerciais. Era algo que não fazia parte da nossa cultura ou dos nossos hábitos e que, lentamente, se foi instituindo como a prática social que define o nosso valor social.
Quando mais compramos, mais dinheiro temos — e sinais exteriores de riqueza garantem-nos a validação social. Mesmo que seja para fotografar, ainda com a etiqueta, publicar no Instagram e devolver. Ou seja, apenas para mostrar. Também há quem arrisque arrancar a etiqueta (ou esconder num bolso) usar e depois entregar na loja. Nos países do Norte da Europa, a fast fashion só aceita devoluções com a etiqueta pendurada, além da etiqueta de código de barras no interior. Porque será?
O que as marcas nos dizem é que precisamos sempre de algo novo. Na verdade, o que precisamos é de comprar menos, por muito que as marcas insistam que precisamos de comprar mais porque estão a investir na sua descarbonização.
Ainda que não seja roupa, é, indirectamente, uma marca de moda: define tendências e assume-se como um elemento que contribui para a construção da nossa identidade. O mais recente vídeo promocional da Apple é disto o melhor exemplo. Em conversa com a Mãe Natureza, comprovam que estão mais “verdes” e a investir na diminuição — ou abolição — da pegada ambiental da marca.
No entanto, tais esforços são um bocadinho inúteis quando invadem o mercado com produtos novos que não introduzem verdadeira inovação ou alteram o paradigma do anterior. Quem consegue, de cor e sem cábula, definir as diferenças entre os últimos iPhones? Quantos saíram nos últimos anos? Em 2020, foi lançado o iPhone 12. Para a semana, fica disponível o iPhone 15. Estamos a falar de um dispositivo cujo preço de entrada é mais ou menos o valor do salário mínimo nacional e, apesar do sistema Android dominar em Portugal, a sua popularidade é inegável.
Descarbonização é importante, mas a verdadeira utopia é combater a obsolescência programada e, nisso, a Apple é exímia, quando os seus dispositivos deixam de aceitar actualizações do sistema operativo ou das aplicações instaladas.
A neutralidade carbónica é garantir a reparação e reutilização e, também neste ponto, não serão as iniciativas de instalar um stand com uma máquina de costura numa H&M que nos fará mudar o hábito de comprar novo, da mesma forma que a maior parte das peças de roupa (se falarmos de electrónica, piora um pouco) não tem reparação possível, muito menos reutilização.
A plataforma resell da Zara, para vender roupa em segunda mão e, afirmam, estender a vida útil dos seus produtos, é como os espaços de roupa em segunda mão da Monki ou de outras marcas fast fashion. Pouco. Tudo está pensado para a rápida substituição porque dizem, as empresas têm de vender.
Correcção: as empresas têm de vender menos.
Almejar menor lucro e não acelerar uma sociedade de consumo selvagem que alimenta outra selvajaria chamada capitalismo. E não, aos detractores desta ideia, não creio que seja necessário voltar ao antigamente, porque não era melhor. Era diferente e, por vezes, diferente é bom. Ou olhar para o que podemos alterar e mudar. Agora, em direcção a esse luxo de continuarmos a viver neste planeta, vestindo o que realmente gostamos. Modas à parte.