A utilização de gravações nos processos de família

O sistema proíbe as provas que sejam obtidas com recurso a tortura, coação ou ofensa da integridade física ou moral.

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Uma gravação poderá ser a única forma de acautelar o superior interesse da criança Andrea Piacquadio/Pexels
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Cada vez mais, nos processos, nomeadamente, nos que envolvem crianças, são usadas gravações feitas, sem conhecimento ou consentimento dos visados, colocando-se a situação de saber se as mesmas podem ser usadas e valoradas como meios de prova.

A regra é a de que, no ordenamento jurídico português, a licitude da prova está, também, relacionada com a forma como a mesma é obtida, sendo que a sua licitude é um limite do direito à prova.

Se é verdade que no processo penal existem regras específicas quanto à inadmissibilidade da prova ilícita, é também verdade que a lei processual civil, apesar de fixar regras que limitam a utilização de certos meios de prova, nada diz de taxativo quanto à inadmissibilidade da prova ilícita.

O sistema proíbe as provas que sejam obtidas com recurso a tortura, coação ou ofensa da integridade física ou moral.

Já as provas que sejam obtidas com violação de outros direitos fundamentais, como seja, por exemplo, o direito à imagem, à intimidade da vida familiar ou privada, o segredo de correspondência, etc., são também provas ilícitas, mas que, em determinadas circunstâncias muito específicas, poderão ser valoradas.

Pode acontecer que o meio de prova que foi ilicitamente obtido, se mostre imprescindível e adequado à prova do concreto facto que se pretende provar e que a relevância do direito subjacente ao facto a provar se sobreponha à relevância do direito violado com a obtenção da prova, justificando-se a compressão do direito violado, para garantia do direito a acautelar.

Pense-se, por exemplo, numa situação em que uma criança, de 6 anos, verbaliza não querer ir para casa do pai, dizendo que a madrasta a maltrata, não sendo tal do conhecimento do pai, pois tal apenas ocorre quando as duas estão sozinhas criando na criança uma situação de terror.

Nesta situação, uma gravação feita pela mãe de uma chamada telefónica, entre a mãe e a criança, em que a madrasta, desconhecendo que a chamada está a ocorrer e a ser gravada, grita e insulta a criança, poderá ser a única forma de demonstrar os factos alegados e, considerando a situação concreta, poderá ser a única forma de acautelar o superior interesse da criança e evitar que esta continue a ser maltratada, devendo ser valorada, não obstante tratar-se de uma prova obtida de forma ilícita.

Diferentemente, uma gravação efetuada pela criança ou pela mãe da criança, sendo a criança mais velha e capaz de explicar ao tribunal, em audição, as concretas circunstâncias da sua vivência, não será uma prova admissível, na medida em que esta prova é nula porque obtida através de meios ilícitos, não tem o consentimento da visada (a madrasta) e não é a única forma de provar os factos alegados, pois poderão ser utilizados outros meios de prova, designadamente, a audição da criança.

Ou seja, não existe uma absoluta necessidade de admitir esse meio de prova, porque existem outros meios de prova que permitem provar esses factos.

Em conclusão, no processo civil, a prova da verdade não pode ser considerada um valor de tal forma absoluto que permita a utilização de quaisquer meios para o efeito. Apenas poderão ser utilizados meios justos, adequados e legalmente admissíveis, sendo apenas em circunstâncias muito concretas em que o bem jurídico violado com a prova obtida de forma ilícita seja menos digno de proteção do que o bem jurídico que se visa proteger com a prova em causa que se exceciona o princípio da nulidade das provas obtidas de forma ilícita.


As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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