Portugal radical

Onde Joana Marques e os seus fãs vêem (compreensivelmente) comicidade, os seguidores destes influencers que falam da actualidade política vêem marcas de genuinidade e verdade.

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Joana Marques ganhou o Globo de Ouro da personalidade do ano na categoria digital. A humorista conquistou enorme popularidade com a sua rubrica no programa da manhã da Renascença, em que, para além de figuras do estrelato nacional, ridiculariza self-made influencers da Internet. O Portugal mainstream diverte-se a ouvi-la parodiar essas pessoas que não se ajustam a certos critérios de exigência; no entanto, quando olhamos mais em particular para os visados que abordam temas da actualidade política, aí, sim, tudo começa a ficar extremamente desagradável.

Uma busca rápida na Net conduz-nos a um mundo paralelo e em expansão no YouTube: aqui não há valores e regras da civilidade democrática, nem éticas e estéticas da urbanidade, mas um viveiro regido por códigos do universo dos gamers que, misturado com um discurso político radicalizado, faz da batalha contra o mainstream uma cartilha evangelizadora, principalmente dos jovens.

Estas celebridades da Internet são maioritariamente rapazes, algures na casa dos 20 anos (uns parecem aspirantes a Nikolas Ferreira à portuguesa), que criaram comunidades com métricas de produtividade, seguidores, visualizações e engagement significativos. Eles alimentam as redes com vários posts e vídeos em que falam sobre os mais variados temas da actualidade: da manifestação da habitação aos debates parlamentares, passando pela estátua de Camilo.

Tendo como alvo o país mainstream, um dos seus tópicos predilectos são os media. Estes criadores de conteúdos alimentam a hostilidade com vídeos em que alertam para as estratégias veladas destes grandes “produtores de mentiras”, enquanto se investem da tarefa de corrigir o que é “intencionalmente mal noticiado”. Mais do que fornecerem um canal de informação adicional para o público jovem, aspiram a ser alternativa ao consumo de notícias convencionais. Para tal, rentabilizam a desconfiança que vários estudos sinalizam: muitos jovens expressam um cepticismo em relação à comunicação social e supõem que grande parte do jornalismo é impreciso ou tendencioso.

Desengane-se quem ache que estamos perante lobos solitários e isolados. Estes jovens falam directamente com os seus públicos, pedem-lhes feedback e reconhecem-nos como uma componente fundamental na promoção dos seus canais e causas políticas. A visibilidade granjeada é potenciada pelas ligações que os influencers estabelecem entre si através de um sistema de participações cruzadas: entrevistam-se mutuamente, promovem debates conjuntos e fazem reacts uns aos outros. Estas colaborações rentabilizam as lógicas algorítmicas, essenciais para amplificarem a sua exposição e multiplicarem os seus públicos – que, por sua vez, são expostos a outros conteúdos e produtores que partilham os mesmos ideários radicais.

Neste ambiente composto por influenciadores interligados, está a ser criado um público para uma rede alternativa de influência. Esta rede faz parte de uma nova estrutura de modelação da opinião pública que está a medrar no espaço digital, mas que se liga a bolsas anti-establishment em espaços tradicionais de poder. O movimento luta pela redefinição do que é a democracia, a liberdade de expressão, a participação política ou a intervenção pública. Luta por um novo mainstream radicalizado.

Estes produtores de conteúdos filmam muitos dos seus vídeos em lugares inusitados, como quartos ou cozinhas, e expressam-se de modo tosco e ziguezagueado. Desconhecem ou rejeitam modelos tradicionais de credibilidade, como o conhecimento profissional e a reputação institucional. Para eles, os códigos da autenticidade e intimidade em rede são potenciadores de confiança e credibilidade. Onde Joana Marques e os seus fãs vêem (compreensivelmente) comicidade, os seguidores daqueles influencers vêem marcas de genuinidade e verdade. Enquanto o Portugal mainstream ri, há um país em (trans)formação que não tem graça nenhuma.

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