Ministério quer equipas dedicadas nas urgências dos cinco maiores hospitais do país
Ministro da Saúde espera que até ao fim do ano tenham sido dados passos para criação destas equipas. Quanto a um acordo com os médicos, diz que tem de significar mais acesso a cuidados de saúde.
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Consciente “das dificuldades e dos problemas” que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está a enfrentar, o ministro da Saúde assume a necessidade de chegar a um acordo com os médicos. Mas afirma, em entrevista ao programa Hora da Verdade do PÚBLICO e da Rádio Renascença, que, além de melhores condições para os médicos, esse acordo tem de se traduzir em mais acesso a cuidados de saúde e na criação de condições para reorganizar o serviço público.
Até ao final do ano, Manuel Pizarro quer avançar com o projecto de equipas dedicadas nas urgências — um modelo em que se prevê que os médicos possam trabalhar em exclusivo nestes serviços — dos hospitais São José, Santa Maria, São João, Santo António e no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, com a criação de Centros de Responsabilidade Integrados.
Sente-se mais pressionado para chegar a um acordo com os sindicatos médicos, depois de o director executivo do SNS perspectivar um Novembro dramático?
Tenho absoluta consciência das dificuldades e dos problemas que estamos a enfrentar, nomeadamente nos serviços de urgência. Temos de fazer um esforço para chegar a um acordo, mas esse esforço tem de assentar no princípio de melhorarmos o acesso aos cuidados de saúde, criarmos condições para reorganizar o SNS e, no mesmo processo, valorizar os profissionais, nomeadamente os médicos.
Isso quer dizer que está disponível para ceder nas 35 horas para todos os médicos e para aumentar o salário-base transversalmente?
Quer dizer que fizemos uma proposta que é, desse ponto de vista, muito equilibrada e que deve ser valorizada. Se não fizermos essas três coisas em simultâneo, vamos apenas adiar por algum tempo, temo que escasso, os problemas que temos hoje. Dou-lhe um exemplo: uma das coisas de que os médicos mais se queixam — é algo com que estou solidário — é o enorme volume de horas extraordinárias que acabam por ter de realizar para prestar serviço de urgência. Temos de conseguir, com este acordo, um equilíbrio entre o que o SNS pede aos seus profissionais, de maneira que se possa reorganizar o serviço dependendo menos de horas extraordinárias e valorizando aquilo que os médicos também valorizam muito, sobretudo os mais jovens, que é uma articulação mais virtuosa entre a profissão e a sua vida pessoal e familiar.
Mas a proposta de dedicação plena implica fazer 250 horas por ano.
A proposta de dedicação plena não está isolada. O que propomos para os médicos que façam urgência é um modelo de flexibilidade. Admitimos que alguns escolham as 35 horas de serviço, que outros queiram permanecer no actual regime das 40 horas e que outros ainda queiram aderir à dedicação plena.
Qual é a margem de manobra que o Ministério da Saúde tem para na próxima reunião poder acolher algumas das reivindicações dos médicos?
Ao longo destes meses de negociações, o ministério tem feito uma evolução muito significativa das suas propostas, procurando perceber as preocupações que os sindicatos exprimem. Agora, repito, não podemos caminhar para uma solução que conduza a maiores dificuldades no SNS. É visível que se dependemos hoje em larga medida do trabalho extraordinário dos médicos – quatro milhões de horas feitos nos primeiros oito meses deste ano –, qualquer solução que diminua a carga de trabalho na urgência dos médicos vai agravar ainda mais esta situação.
Mas o horário de 35 horas não reduz o horário na prática.
Com um modelo de descanso compensatório com prejuízo do horário de trabalho, que foi implementado para compensar o facto de os médicos serem a única carreira da administração pública que se mantinha nas 40 horas semanais, o horário efectivo de trabalho está na maior parte dos profissionais em 34 ou até 32 horas. Por isso é que podemos aceitar uma solução de 35 horas com o aumento da remuneração. Mas, naturalmente, nessa solução não pode continuar a haver prejuízo do horário de trabalho, se não então é que ficamos sem condições para os hospitais continuarem a funcionar.
Porque não alargar esta possibilidade do horário das 35 horas a todos os médicos?
O prejuízo do horário de trabalho só existe para os médicos que fazem urgência, para os outros não existe. E se é verdade que nós precisamos de médicos para o serviço de urgência, o serviço de urgência não é a única actividade assistencial no hospital. Nós precisamos de médicos para as consultas, para as cirurgias, para muitas outras actividades. Tudo isso pode ser negociado com adequada tranquilidade, desde que, no final, seja possível encontrar um modelo no qual o SNS e os portugueses fiquem a ganhar. E em que os médicos sejam também naturalmente compensados.
Até Agosto foram gastos 200 milhões de euros em horas extraordinárias. Contas por alto, davam para contratar 5000 médicos.
Sim, mas esses 5000 médicos não existem para serem contratados.
Existem, não estão é no SNS.
Convém não termos nenhuma dúvida sobre os números. No final de 2015 (vou excluir os hospitais em parceria público-privada que passaram para o sector público, para que a comparação seja o mais justa possível), tínhamos 16.700 médicos especialistas no SNS. E temos em Setembro de 2023, que é o número mais actualizado, 20.600 médicos. O número de médicos especialistas no SNS aumentou 3000. Não pode ser apenas uma questão de orçamento, não pode ser só mais profissionais (e, sim, precisamos de mais profissionais, médicos e outros), mas tem também de haver aqui um modelo de organização que permita que tudo isso se articule de forma mais adequada.
Mas, se pagar mais e se se aproximar mais dos salários pagos pelo sector privado, conseguirá mais profissionais?
Isso, além do mais, seria supor que os médicos que pudesse contratar vinham para fazer urgência ou só para fazer urgência. Isso não vai acontecer e acho que, em geral, nem seria desejável que acontecesse. Embora uma parte do processo de reorganização do serviço de urgência, que a direcção executiva está a conduzir, seja criar equipas dedicadas ao serviço de urgência, pelo menos nas urgências de maior volume.
Vamos até ao final do ano implementar no terreno os Centros de Responsabilidade Integrados (CRI) dedicados às urgências, pelo menos nos cinco maiores hospitais do país: no Lisboa Central (Hospital São José), no [hospital] Santa Maria e em Coimbra. No Porto, será no Santo António e no São João. Acho que esse modelo também é essencial para podermos depender menos da urgência e da sobrecarga que impomos aos médicos no serviço de urgência.
Que proposta vai apresentar aos sindicatos médicos para a constituição destes centros de responsabilidade integrados?
O modelo que pretendemos adoptar é, de certa forma, inspirado no modelo das Unidades de Saúde Familiar (USF). São equipas multiprofissionais, com um certo nível de auto-organização pelos próprios profissionais e com um modelo de remuneração com três componentes: remuneração-base, suplemento (que será o suplemento da dedicação plena) e uma componente de índice de actividade de remuneração associada ao desempenho. O objectivo será que, como acontece nas USF modelo B, o profissional possa aspirar ter em torno o dobro da sua remuneração-base. Estamos convencidos de que, com este modelo, como acontece nas USF, vamos conseguir melhorar a organização dos hospitais e melhorar também a satisfação dos profissionais.
Quando podem iniciar estas equipas?
A nossa expectativa é que possamos colocar esse diploma em negociação ainda no mês de Novembro e espero que até ao final do ano, pelo menos nestes cinco hospitais que vamos utilizar para lançar o projecto (e o projecto não ficará confinado a estes hospitais, pode haver outros que queiram ter iniciativa e profissionais para avançar), sejam dados os primeiros passos para estas equipas.
Estarão a trabalhar em Janeiro?
Dependerá da velocidade do processo, mas estarão a trabalhar nos primeiros meses do próximo ano, com toda a certeza.
Segundo o movimento Médicos em Luta, mais de mil médicos de família assinaram uma carta a dizer que não aceitam o decreto-lei da generalização das USF modelo B, que implica a aceitação do regime de dedicação plena. Já recebeu esta carta?
Pelo menos até esta manhã [de terça-feira], a carta não tinha chegado ao ministério. Mas interpreto essa carta como uma incompreensão daquilo que está em debate. O que está proposto e o que vai ser legislado é a generalização de um modelo de organização dos cuidados de saúde primários que os profissionais reclamaram durante estes últimos 10 ou 15 anos.
Quantas USF modelo A poderão passar para B, de acordo com os novos critérios?
Durante 17 anos foram criadas cerca de 340 USF modelo B, das quais 34 já este ano. O que nós prevemos, com este decreto-lei, é que, em Janeiro, cerca de 250 unidades de uma vez só (200 a 210 USF modelo A e cerca de 40 unidades de cuidados de saúde personalizados) possam ascender a modelo B. É um movimento de profunda aceleração da reforma dos cuidados de saúde primários. Estimamos que mais de 300 mil portugueses possam ter acesso a equipas de saúde familiar.
Por que é que não avançam as tais USF modelo C, que têm gestão privada? Em Janeiro disse que haveria novidades.
Disse que iríamos avaliar se esse modelo é exequível.
E é?
Todo o diálogo que conduzimos, nomeadamente com o sector social, fez-nos perceber que não há profissionais disponíveis. Se nós avançarmos hoje com as USF modelo C, elas poderão acontecer, num ou noutro local, à custa de profissionais que saem do SNS para ir para as USF modelo C.
E não há ninguém do sector privado interessado?
Praticamente não há médicos de medicina geral e familiar fora do sistema disponíveis para aderir a este modelo. O país cometeu um grave erro de planeamento, não tendo em conta que estes anos, entre 2020 e 2024, são anos com um volume muito elevado de profissionais a reformarem-se. O que está em causa não é o nível de formação que estamos a ter (nos últimos três anos entraram, em cada um dos anos, na especialidade de medicina geral e familiar mais de 500 médicos), não está em causa a nossa capacidade de atrair esses profissionais (no último concurso feito em Maio, 91% dos especialistas que tinham acabado a especialidade ficaram no SNS), está em causa o facto de que estes números, sendo muito positivos, não compensam o volume de reformas.
É o aspecto mais grave que afecta o SNS, porque a inexistência de cobertura plena de médicos de medicina geral e familiar também dificulta outras reformas imperiosas, por exemplo, a reforma dos serviços de urgência. É evidente que ela só pode ser concluída na sua plenitude se tivermos boa alternativa para oferecer aos cidadãos.
Não começa a haver um padrão de atrasos que já é comum no Ministério da Saúde? Estivemos sem director-geral da Saúde durante quase um ano, a direcção executiva só agora é que tem estatutos.
A directora-geral da Saúde esteve em funções até ao dia 31 de Julho e depois disso foi substituída, sem nenhuma perturbação para o serviço, pelo subdirector-geral, que estará em exercício de funções de substituição até ao dia 1 de Novembro, quando entrar em funções a nova directora-geral. Não houve nenhuma perturbação no funcionamento da direcção executiva do SNS pelo facto de os seus estatutos terem sido publicados apenas neste mês. Talvez seja ocasião de explicar que a modificação que estamos a fazer no SNS é a maior desde que foi criado, porque a estrutura do SNS passará a ter a direcção executiva, 39 unidades locais de saúde (ULS), três institutos portugueses de oncologia e um hospital gerido em parceria público-privada. Este modelo precisou de ser adequadamente ajustado para prevermos em rigor a transferência de competências entre os diferentes organismos do Ministério da Saúde e a direcção executiva.
O que é que traz de novo este modelo de ULS em relação às ULS que já existem e que não mostraram ser mais satisfatórias do que outros modelos organizativos?
Existem neste momento oito ULS. Em duas são inquestionáveis os avanços na prestação de cuidados com esse modelo de integração de cuidados de saúde primários com cuidados hospitalares – em Matosinhos e no Alto Minho.
Duas em oito.
As outras seis unidades estão implantadas em locais de baixa densidade demográfica, onde a boa pergunta não é saber o que é que ganhámos por ter lá ULS, é o que é que já teria acontecido se não houvesse ULS. Porque, apesar de tudo, as ULS permitiram gerar alguma massa crítica que atenuou o impacto da rarefacção de profissionais que existe em muitas dessas regiões. Agora, estamos a fazer esta reforma por uma razão positiva, porque vemos vantagem para os utentes e para a organização do sistema numa articulação virtuosa entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares, colocando o percurso do utente no centro do sistema.
Mas isso funciona se todos os utentes tiverem médico de família.
Mas, mesmo nos sítios onde isso não acontece, pode permitir uma utilização mais judiciosa dos recursos. Por exemplo, nas consultas de especialidade hospitalar, temos vindo a aumentar a actividade do SNS, mas a procura aumenta ainda mais rapidamente. Numa ULS, podemos imaginar que, em muitos casos, a necessidade de o utente se deslocar à consulta de especialidade pode ser substituída por modelos mais amigáveis e de maior proximidade. Pode ser o especialista hospitalar que se desloca ao centro de saúde, que faz consultadoria com os médicos de medicina geral e familiar, ajudando a orientar o percurso de alguns doentes sem uma tão grande dependência das consultas hospitalares. É esse modelo que, progressivamente, queremos implementar.