Opções de política tecnológica: a importância da avaliação, transparência e debate democrático

Em Portugal, existe uma ausência de formalização da ciência para assuntos políticos em que a procura de aconselhamento é, em grande medida, informal.

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A crise política que se iniciou com o pedido de demissão de António Costa tem por base suspeitas de decisões mal conduzidas a propósito do investimento avultado em novas tecnologias. É uma situação em que decisões governamentais terão sido tomadas sobre o investimento em novas tecnologias (neste caso, produção de hidrogénio e mineração de lítio).

Em Portugal, e de acordo com o documento produzido para a Comissão Europeia sobre o contributo da ciência para a definição de políticas, não existe uma abordagem à gestão dos pareceres científicos. Existe, sim, uma realidade multifacetada, com unidades de investigação, Laboratórios Associados e Laboratórios do Estado, peritos individuais e consultores, que constituem diferentes comissões ou conselhos de aconselhamento. Existe, assim, uma ausência de formalização do aconselhamento científico para assuntos políticos e este é, em grande medida, informal e influenciado por características, confiança e percepção do cumprimento das opções políticas.

Naquele documento, constata-se que a sensibilização dos órgãos de soberania para o aconselhamento científico é considerada relativamente fraca, especialmente para o Presidente da República e para o Parlamento.

Pesquisando sobre estudos acerca destas novas tecnologias, foi possível encontrar alguns que foram levados a cabo pelas referidas estruturas. No entanto, dado o contexto pouco transparente, não é claro se esses estudos foram tidos em consideração aquando da tomada de decisão, e por quem. Será esta uma situação única de Portugal? De facto, existem mecanismos de avaliação de tecnologia estabelecidos internacionalmente que permitem fazer opções com bastante mais transparência, informação e controlo democrático. Analisemos então alguns dos esforços a nível parlamentar para introduzir transparência e debate nacional, por exemplo, sobre a opção da produção de hidrogénio.

O Gabinete Parlamentar de Ciência e Tecnologia (POST) do Reino Unido elaborou e disponibilizou ao público um relatório sobre as previsões da economia do hidrogénio, baseados em revisões de literatura científica e entrevistas com diversas partes interessadas e revistas externamente por pares. O estudo descreve diferentes formas de produção de tecnologia que permitem reduzir as emissões de carbono, examinou a quantidade de hidrogénio com baixo teor de carbono que poderá ser necessária no futuro e os desafios no aumento da produção. O Parlamento discutiu também o armazenamento e transporte de hidrogénio, os desafios comerciais e regulatórios e o potencial mercado global.

De igual forma, o Bureau de Avaliação Tecnológica do Parlamento alemão (TAB) disponibilizou o estudo sobre as oportunidades e os riscos de parcerias e tecnologias de hidrogénio nos países em desenvolvimento.

O Gabinete Parlamentar de Avaliação de Opções Científicas e Tecnológicas francês (OPECST) publicou dois estudos sobre métodos de produção de hidrogénio e armazenamento eléctrico. O Conselho Norueguês de Tecnologia (NTO) elaborou para o Parlamento dois estudos sobre o hidrogénio que levou à adopção de uma estratégia sobre a mudança verde e o potencial climático e industrial da tecnologia do hidrogénio. O Bureau de Investigação do Parlamento polaco (BAS) disponibilizou quatro estudos sobre a economia do hidrogénio.

Por último mas não menos relevante, o Painel para o Futuro da Ciência e Tecnologia (STOA) do Parlamento Europeu elaborou quatro estudos sobre a descarbonização da indústria europeia, da produção de aço, do transporte e do metanol.

Este tipo de opções tecnológicas corresponde a grandes investimentos que alteram não só o valor ambiental e cultural das regiões, mas também o território, a qualidade de vida, os recursos e o emprego em todo o país.

Estes grandes investimentos no hidrogénio, bem como em data centers, em centrais fotovoltaicas ou eólicas e a fabricação de baterias carecem de estudos, esclarecimentos, debates, envolvimento das populações e, em particular, dos seus representantes democraticamente eleitos.

Estas consultas devem ser estendidas de forma transparente e democrática a todas as partes interessadas e afectadas pelo investimento. Não devem ficar fechadas em gabinetes do estado ou nos escritórios das grandes empresas. Deve sempre existir uma maneira de se sujeitar ao escrutínio público, para evitar o envolvimento em processos judiciais, devido a conflitos de interesses. É necessário, por isso, que se consensualizem as opções tecnológicas e minimizem os riscos e a segurança inerentes à tecnologia.

Em suma, a responsabilidade em torno de um grande negócio é diferente daquela que é estabelecida através de um compromisso democrático, com base numa avaliação de carácter científico que considera as diferentes partes interessadas. Num negócio apenas se consideram as consequências financeiras e, eventualmente, de mercado. Num processo de avaliação de tecnologia sério consideram-se com transparência todas as diferentes consequências sociais, políticas, económicas, ambientais e territoriais encontradas a partir da análise multivariada. O Observatório de Avaliação Tecnologia alertou para a importância de uma estrutura deste tipo.

Em 2009, a Assembleia da República aprovou a Resolução n.º 60/2009, de 3 de Agosto, onde se prevê a criação de uma plataforma de políticos e cientistas, para a constituição de um Gabinete Parlamentar de Ciência e Tecnologia. Um estudo parlamentar apresentado em 2013 concluiu que, apesar do interesse desta iniciativa, não existia enquadramento orçamental para a mesma, tendo sido proposto o estudo de outras alternativas.

Em 2015, uma outra resolução aprovou por unanimidade o relatório da Comissão de Educação, Ciência e Cultura de 21 de Julho onde se propunha a “criação de uma Unidade Parlamentar de Avaliação Tecnológica, enquanto unidade autónoma e independente sediada no Parlamento” (p. 7). Esta unidade deveria ter um conselho coordenador com um representante de cada Comissão Parlamentar, devendo a presidência caber a um dos seus membros.

Além disso, essa unidade teria um conselho consultivo com representantes da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, do Observatório de Avaliação de Tecnologia, dos programas científicos associados à avaliação tecnológica e das entidades financiadoras, a existir. Deveria também funcionar como as unidades de avaliação tecnológica dos outros parlamentos europeus (como os acima referidos), ou seja, seria a Assembleia da República a aprovar os temas a serem estudados em cada sessão legislativa. Infelizmente, o actual Parlamento português permanece, à revelia dos seus congéneres europeus, sem este tipo de apoio para o informado debate democrático e transparente que se desenvolve nos países mais desenvolvidos.

No dia 24 de Outubro de 2023, o tema foi novamente discutido no parlamento, através da realização de uma sessão na Assembleia da República com o objectivo de reunir representantes e associados da Rede Europeia de Avaliação Parlamentar de Tecnologia (EPTA) e apresentar exemplos do trabalho realizado em diferentes países/regiões (Catalunha, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Países Baixos), Parlamento Europeu e discutido o seu impacto legislativo.

Espera-se por isso, que o nosso Parlamento aprove na próxima legislatura a existência de um organismo que possa realizar esses estudos de avaliação de tecnologias sobre os impactos ambientais, económicos, sociais e políticos, num processo transparente, participativo e inclusivo, que sirva de orientação às opções de investimento. Desse modo, poderíamos conseguir decisões mais consensuais sobre aspectos complexos que algumas tecnologias comportam.

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