Caro Xavier,
Quando aterrei no Porto, há três dias, a cidade estava banhada por uma luz quente, quase leitosa, que julgava conhecer pelos filmes de Manoel de Oliveira. Depois, uma manhã, com o nevoeiro espesso capaz de transfigurar os edifícios numa entidade onírica, achei que as minhas referências cinematográficas eram ridiculamente insuficientes.
Sentia-me como as personagens de Les Naufragés de l'île de la Tortue (Os Náufragos da Ilha da Tartaruga, Jacques Rozier, 1976), que se debatiam secretamente com a inquietante realidade de estarem perdidas, apesar de constantemente afirmarem que tudo estava sob controlo.
Nunca é fácil pôr em marcha experiências colectivas. Rozier sabia-o melhor do que ninguém: basta pensar em Pierre Richard e Jacques Villeret a interpretarem o que pensam ser dois directores executivos visionários que se encontram na posse dos segredos da sociedade. Dica: esses segredos não existem. Mas tiveram de o aprender da forma mais difícil.
Por que razão me preocupo tanto com o carácter perverso destes protagonistas? Há anos que sonho com Portugal, que frequento aulas de línguas na universidade só para me imergir na sua cultura, que me consola. E, finalmente, aqui estou! Realizado, mas consciente do facto de, apesar dos meus esforços, vou continuar a ser apenas um turista.
Com a sua trajectória escapista e o seu imaginário de terras longínquas, a inclusão do filme de Rozier na programação do Porto/Post/Doc representou o contraponto absoluto da dimensão documental do festival.
No entanto, de alguma forma, esta escolha foi como um aceno para o que significa ser um aspirante a crítico de cinema hoje em dia. Ao reflectir sobre o assunto nos últimos dias, o paralelo pareceu-me inevitável: uma e outra vez, entro no desconhecido da sala de cinema, apenas para dela sair ora enriquecido, ora relaxado, ora deprimido ou aprisionado pelo que vi. Tal como Richard, e todos os outros, sou sempre o turista nas histórias dos outros. E isso até me reconforta.
Desde o meu primeiro encontro com o filme, o seu fascínio pelo verde exótico e pelas paisagens húmidas dos territórios ultramarinos franceses – em si mesmo um espectáculo raro no cinema – nunca mais me abandonou. Como não me abandonou o tom político do enredo. Não é que esta viagem organizada a uma ilha deserta das Caraíbas fosse um mero pretexto: em todo o seu interesse pelas dinâmicas contraditórias do grupo, a viagem alcança uma qualidade concreta e corporal que ultrapassa a metáfora.
Tinha-me apercebido que este filme é essencialmente um produto do l'après coup: uma exploração do que veio depois. Fazia parte do génio de Rozier que este "depois" pudesse encarnar tanto uma história nacional abrangente (uma era de explorações ousadas que abriu caminho ao colonialismo), como uma intuição fugaz que levaria anos a cristalizar (a transformação da experiência humana em mercadoria).
Mas este "depois" era também, inegavelmente, cinema. De facto, o que me levou a escrever-te foi a tua bela análise do filme, alinhando-o com predecessores ilustres como Anne of the Indies (A Rainha dos Piratas, Jacques Tourneur, 1951) ou Moonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, Fritz Lang, 1955).
Esses filmes sobre façanhas espantosas, como reparaste, distavam apenas vinte anos da abordagem muito mais irónica de Rozier – no entanto, tudo à sua volta parecia ter mudado definitivamente. Para ti, não é que o mundo tenha, entretanto, sofrido transformações drásticas. Pelo contrário, foi o cinema que mudou, afastando-se das grandes narrativas de glória, exotismo e moralidade, até ao seu desaparecimento.
É, pois, como se Les Naufragés de l'île de la Tortue fossem as ruínas de um filme de piratas. Rozier tinha conseguido encontrar um equilíbrio entre O Coração das Trevas e o comum pacote de viagem com tudo incluído. Esta elegia impossível a um passado corrompido só pode ser consumida libertando as emoções mais vis que assaltam cada personagem – sejam as suas queixas sobre a vida na cidade grande ou as suas lutas na expedição.
Gosto de pensar neste filme – na sua impressionante ideia empresarial, que seduz o cliente a desejar ideias que nunca deveriam ser vendidas (privação de tudo, ou mesmo a morte) – como um comentário ao capitalismo moderno.
No segundo visionamento, não pude deixar de reparar na estranha estrutura do enredo. Surpreendeu-me o tempo que é necessário esperar, avançando uma série de hipóteses que, logo depois, são descartadas (o primeiro terço do filme limita-se a acumular múltiplos falsos começos ou "faux départs").
Depois, ganha força a bordo de um navio, para acabar por se demorar eternamente no convés, com a costa à vista, durante uma longa sequência que transforma esta farsa numa discussão demente sobre a forma correcta de desembarcar. Quando as pessoas, finalmente, chegam à ilha, o filme começa a apressar-se, como se soubesse que já não resta muito tempo.
Esta é uma qualidade muito humana: não saber lidar com o tempo – conseguindo assim uma duração própria, que não conhece limites pré-estabelecidos. É, a meu ver, o sinal infalível da mise en scène.
Um abraço,
Victor