“Chegou a altura de dizermos basta”
Corroborando o discurso cada vez mais assertivo de Josep Borrell, o ministro português Gomes Cravinho afirma que Netanyahu “dizer que é contra [a solução de dois Estados] é dizer que é contra a paz”.
João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, fez há dias um interessante relato do encontro com os seus homólogos árabes – do Egipto, da Jordânia, da Arábia Saudita e da Palestina – e israelita, na saída do Conselho dos Negócios Estrangeiros da União Europeia. As suas declarações são feitas sempre na primeira pessoa do plural, denotando um discurso de unidade e coesão no âmbito dos 27. E enquadram-se no que hoje podemos chamar o culminar do ponto de viragem com um passado recente de mais de duas décadas, nas quais a ação diplomática internacional relativamente ao conflito prolongado em Israel e na Palestina tem sido maioritariamente pautada por “paninhos quentes” e pouca assertividade.
Vale a pena lembrar que a entrada de Israel e da Palestina no século XXI começa com uma ação de provocação de Ariel Sharon, que, não estranhamente, foi um político do partido de Benjamin Netanyahu, o Likud, que desencadeou uma onda de revolta e indignação por parte da população palestiniana. No rescaldo do falhanço dos Acordos de Oslo e do assassinato de um dos seus negociadores, o então primeiro-ministro Yitzhak Rabin, por um seu compatriota ultranacionalista e judeu ortodoxo que se opunha à perspetiva de paz através de uma solução de dois Estados, o crescimento da radicalização e do extremismo era patente em toda a região. A Segunda Intifada foi uma resposta palestiniana violenta ao que naquela altura já eram décadas de ocupação, expropriação e marginalização. E foi acompanhada da institucionalização de uma política estatal por parte de Israel de segregação, securitização do “outro” e punições coletivas, cuja expressão material encontra lugar no chamado “muro de separação”, que curiosamente é bem mais alto do que o Muro de Berlim.
Assim, os últimos 20 anos foram marcados pela divisão. A morte do líder histórico da causa palestiniana, Yasser Arafat, em 2004, deixou um vazio de poder que levou às primeiras eleições diretas da jovem estrutura de governação provisória dos palestinianos, estabelecida pelo processo de Oslo dez anos antes, a Autoridade Palestiniana. A vitória do Hamas sobre a Fatah em janeiro de 2006 levou a uma cisão até agora permanente entre o governo da Faixa de Gaza, onde ficou entrincheirado e cercado pelo país vizinho o autodenominado Movimento de Resistência Islâmica, e a Cisjordânia, sob controlo da Fatah, representada por Mahmoud Abbas. Enquanto isso, foram eleitos governos israelitas sucessivamente mais radicais no que diz respeito ao bloqueio dos anseios de autodeterminação dos palestinianos, supressão dos seus direitos e desrespeito pelas resoluções internacionais da ONU que, dentre outras coisas, proporcionaram a criação do Estado de Israel.
A perda de legitimidade da Fatah foi expressa na eleição do Hamas e acompanhada pelo fortalecimento de políticas israelitas de alteração da geografia da região. Num exercício que se assemelha a uma (re)construção consciente da “realidade geopolítica”, Israel incentivou a construção de colonatos em território reconhecido como parte do futuro Estado da Palestina e a demolição de casas e expropriações em zonas cruciais como Jerusalém Oriental. Isto levou a uma decisão da Organização para a Libertação da Palestina de rutura com as conversações diretas com Israel e busca de uma via alternativa de reconhecimento formal do Estado da Palestina, tal como previsto na década de 90. Entre 2010 e 2012, os palestinianos apostaram nas Nações Unidas para pôr a nu o que todos já sabiam: que a situação de vida nos territórios ocupados era insustentável e que a autodeterminação era a única saída para garantir o fim da conflitualidade prolongada.
A ONU disse que sim. Há pouco mais de dez anos, no mesmo dia em que, 65 anos antes, o mundo havia votado pela partilha da região entre dois Estados, a Assembleia Geral aprovou um pedido de alteração do estatuto da representação palestiniana de Entidade Observadora para Estado Não-Membro da Organização. Como sabemos, estas ações, por mais que carregadas de simbolismo, não foram capazes de criar um Estado Palestiniano por si só. A verdade é que um Estado não se cria por decreto e, neste contexto, em que o colonialismo de assentamento já está completamente espalhado pela região, certamente que não se cria sem uma decisão política que envolva vontade, negociação e planeamento. E, assim, volto a João Gomes Cravinho.
Corroborando a ação discursiva cada vez mais assertiva de Josep Borrell, alto-representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros, o ministro dos Negócios Estrangeiros português afirmou ontem, sem rodeios, que Netanyahu “dizer que é contra [a solução de dois Estados] é dizer que é contra a paz” e que espera que o líder de Israel reveja a sua posição para “ter uma abordagem construtiva à paz e não uma abordagem de bloqueio”. Cravinho, que, além de ser ministro, é professor de Relações Internacionais e profundamente conhecedor dos obstáculos políticos e assimetrias de poder que muitas vezes emperram os processos negociais, afirmou: “Não podemos ficar inteiramente dependentes daquilo que um dos atores quer”. Este reconhecimento explícito é essencial, porque, sem a identificação dos fatores que levam ao falhanço dos processos de paz, a própria ideia de “processo” toma primazia sobre o objetivo de construção da paz, levando a um desfasamento de expectativas tanto ao nível das elites políticas quanto ao nível populacional.
O prolongar dos processos, que tende a servir à manutenção do statu quo e dos interesses dos que precisam do sentimento de insegurança e ameaça para se perpetuarem no poder, leva ao descrédito das soluções políticas e promove a ideia de que a violência, a radicalização e/ou a marginalização são a única opção viável.
Desde 7 de outubro que discursos da UE ao mais alto nível, de Borrell a Sánchez, têm contrariado esta ideia. E têm sido muito criticados por aqueles que olham para mais este episódio de escalada do conflito como se estivesse isolado de todo um contexto de normalização de um estado de guerra que já dura há mais de meio século. Não, Borrell não está a comprometer a posição diplomática da UE. Pelo contrário. Ao questionar claramente qual é a alternativa perspetivada pela liderança de Israel ao processo de implementação da solução dos dois Estados, e se pretende expulsar ou matar todos os palestinianos, está a dizer que a UE não fará mais ouvidos moucos e que os 27 não mais se enganam relativamente ao que tem sido a realidade deste conflito face à liderança extremista de Netanyahu e sua companhia. E fá-lo porque reconhece que Israel, sob a liderança de Netanyahu, tem-se isolado cada vez mais, colocando de lado a própria ONU e o seu secretário-geral, contrariando vezes sem fim o seu maior aliado e oferecendo ao mundo um espetáculo de horror e desumanidade em direto com Gaza como palco principal.
E, neste contexto, Cravinho foi ainda mais além, ao dizer: “Não podemos estar dependentes daquilo que é a vontade de uma parte – ou de um homem.” O ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal chega no fim deste ciclo político com a assertividade e clarividência que se espera de alguém na sua posição. E atira: “Neste momento, chegou a altura de dizermos basta. Nós vamos ter que empurrar as partes para um entendimento.” Que os 27 o ouçam!