A triste sina das lojas históricas
Em 2023 fecharam 16 lojas emblemáticas de Lisboa, o pior registo dos últimos 30 anos. O que explica esta contabilidade? O que é preciso fazer para a travar a morte de lojas importantes para a cidade?
A crueza dos números fala por si e ilustra bem o título acima: só em Lisboa, e vou cingir-me à minha cidade e aos meus cálculos, fecharam perto de 100 lojas históricas desde que estamos no século XXI, daquelas mesmo históricas, que todos conhecemos, por sermos seus clientes como os nossos pais e avós o foram, por as admirarmos pela sua beleza e carácter irrepetíveis, ou, simplesmente, porque sempre foram as nossas lojas de bairro.
Com efeito, é preciso recuarmos aos idos de 70 e 80 para que os números deste século não sejam um recorde absoluto, e mesmo aí é preciso não esquecer que só com o incêndio do Chiado, em 1988, houve uma razia de lojas históricas nas pouco mais de duas ruas afectadas — R. Nova do Almada e Rua do Carmo —, vendo-nos espoliados de uma assentada da Pastelaria Ferrari, Casa Batalha, José Alexandre e por aí fora.
Nem vou referir os já longínquos desaparecimentos, pontuais, uns, em resultado da lei da vida, outros, de lojas que foram autênticos “templos” no seu ramo: a Kermesse de Paris ou a Biagio Flora (brinquedos); a Manteigaria Londrina e as pastelarias Bijou, Marquês e Roma; e os cafés Monumental, Monte Carlo e Colombo; a alfaiataria Pestana & Brito; a boutique Rampa; ou a Socidel, das raquetes e demais artigos desportivos.
Facto indesmentível: o ano de 2023, em que fecharam 16 lojas emblemáticas, foi o pior dos últimos 30 anos. Já 2018 tinha sido péssimo, com o fecho de 13 lojas conhecidas. Um aumento exponencial, se pensarmos que no resto do presente século os números tinham sido muito menos impactantes, havendo mesmo anos em que não encerrou nenhuma loja histórica: 2000 (1 fecho), 2003 (1), 2006 (2), 2007 (2), 2009 (4), 2010 (3), 2011 (3), 2012 (5), 2013 (3), 2014 (3), 2015 (5), 2016 (5), 2017 (4), 2019 (4), 2020 (2) e 2022 (7).
Dir-me-ão, e bem, que as lojas têm, como tudo o resto, um ciclo de vida, que nada é eterno e o que é bom dura pouco. E que quando determinado lojista morre e os seus herdeiros não querem prosseguir o negócio, pouco ou nada haverá a fazer para manter a actividade e até a loja. Ou que, falindo uma loja, é raro quem lhe pegue e mantenha o ramo. Será. E que as cidades são mutáveis, e acima da lei há a lei do mercado, blá, blá.
É verdade que cada caso de encerramento, que muitos choram e nunca lá entraram, é por si próprio um caso, e que as justificativas são as mais variadas. Mas há muitas explicações mal explicadas, e outras em que há má e não boa-fé, ou em que o incumprimento da lei e da regulamentação em vigor foi claro e ninguém puniu quem incumpriu. Outros casos há onde, simplesmente, donos e empregados nada fizeram (nem ninguém os ajudou a fazer) para manter clientes, atrair novos, quanto mais recuperarem os que deixaram de o ser.
Há de tudo um pouco, mas há alguma coisa que quem de direito devia fazer e não faz: regular o mercado. Porque só com isso teria salvado a maior parte das lojas históricas que têm vindo a morrer na autêntica hecatombe da última década, e evitar-se-ia esta contabilidade funerária.
Vejamos as prioridades.
1. Urbanismo comercial
Agir sobre ele, ou melhor, criá-lo, porque na realidade o que existe é uma absoluta falta de estratégia e planeamento em termos de urbanismo comercial, que grassa pelo país há décadas.
Aí, há que garantir um leque efectivo de apoios a quem quer continuar com a porta aberta e a honrar quem lhe deixou o espaço: apoios financeiros para obras de conservação e restauro, mas também na formação, naquilo a que parece óbvio que ninguém liga, mas que é decisivo para a continuidade da loja: o atendimento, a arrumação da loja, o vitrinismo, a promoção, a embalagem, a origem e a garantia do produto.
Os antigos programas Urbcom, Procom ou Modcom, também eles munidos dos “milhões da CEE”, podiam ter servido para isso, mas não serviram, e agora estamos como estamos — lembro-me, por exemplo, das belas farmácias antigas que, ao abrigo de uma “informatização” da gestão, foram completamente estropiadas, sem apelo nem agravo, restando hoje muito poucas intactas.
Há que terminar com o famigerado “licenciamento zero”, que mais não é do que receita extraordinária para as autarquias. Travar a fundo a autorização de mudança de uso para os espaços comerciais históricos. É tempo também de o Governo e as autarquias deixarem de ignorar a pandemia de lojas de ímanes, atacando onde devem atacar, na sua génese altamente duvidosa, senão mesmo criminosa — só neste “upgrade” terceiro-mundista, Lisboa perdeu dezenas de lojas históricas: Casa dos Carimbos, ourivesarias Catita, Barreto & Gonçalves, etc., etc..
Permitam-me este aparte: como é possível que com tanto empresário têxtil que existe por aí, criador de moda galardoado e artista internacional do ramo, nunca se tenha constituído um cluster das retrosarias da Rua da Conceição? A esta hora, em vez das três ou quatro resistentes de agora (a Adriano Coelho está por um fio) teríamos a quinzena que por ali existiu até há uns 15 anos. Cooperação é termo que continua a não existir em Portugal, e nem Câmara Municipal de Lisboa (CML), Estado ou associações do sector sabem (querem?) mediar seja o que for.
Como é possível que a cidade esteja neste momento a prescindir de espaços notabilíssimos (e por isso classificados de Interesse Público e Municipal) como a Cervejaria Solmar, o Restaurante Tavares ou a Ourivesaria Barbosa Esteves, abandonados há anos? Que continuam fechados, a ganhar pó ou a perder sabe-se lá o quê? Não há ninguém do ramo da restauração, nenhum chef que pegue na maravilhosa cervejaria ou no luxuoso salão ao Chiado, nem nenhum grupo de joalheiros da nova vaga que dê bom uso àquela jóia modernista da Rua da Prata?
Onde param a Escola de Comércio, as escolas e associações sectoriais? Enfim…
2. Reabilitação urbana
Esta não pode ser usada como instrumento de extermínio de lojas históricas! Fazendo “gato-sapato” do Lojas Com História (LCH), um programa de apoio às lojas históricas que foi lançado em 2015 pela autarquia e que foi uma autêntica pedrada no “laissez-faire, laissez-passer” em que costumávamos estar, razão maior para a avalanche de lojas fechadas verificada nas últimas décadas do século passado e início do presente. Uma corrida contra o tempo, na verdade, contra o prejuízo.
Exemplo dessa instrumentalização da “reabilitação urbana” é quando um promotor do projecto invoca a saída da loja histórica do edifício (em regra, mínimo duas lojas por prédio, muito mais se for para hotel) como indispensável para que a reabilitação avance. A CML devia contrapor-lhe o seguinte: “Só há reabilitação se estiver garantida a manutenção da loja classificada in situ (classificada no LCH ou pela Carta Municipal do Património, porque o PDM assim o obrigaria)”. Convenhamos que a desculpa de deslocalização temporária da loja até que as obras se concluam, em que o que regressa é sempre um fake do que lá estava antes, é uma desculpa de mau pagador, porque há uma coisa chamada cofragem, que qualquer empresa de engenharia sabe e pode fazer, evitando-se assim a falsificação patrimonial e histórica.
O que acontece sobremaneira é que nem sequer essa deslocalização chega a ser acordada: o lojista negoceia a melhor indemnização possível e segue à sua vida; que se danem a cidade, a história e a afectividade. Sendo LCH, melhor, o preço sobe, o projecto torna-se “barriga de aluguer”, como já aconteceu por diversas vezes, infelizmente.
Outra praga que importa travar ou reverter, nos casos já verificados, é o licenciamento de vãos dos pisos térreos nos edifícios que não os têm (um mal que pegou de raiz na Baixa Pombalina, a tal que é “candidata à UNESCO”, mas também noutros bairros históricos como a Bica ou a Estrela). Como é possível que isso continue a verificar-se?
3. Arrendamento urbano
A Assembleia da República haveria de legislar em 2016 quanto ao regime jurídico do arrendamento urbano, garantindo a todas as lojas que fossem, ou viessem a ser, classificadas pelas autarquias do país como “lojas com história”, uma protecção legal que lhes evitaria aumentos exponenciais da renda ou despejos até 2022, primeiro, 2027, depois.
O problema, como se viu recentemente, é que houve lojas que ou não souberam invocar junto do senhorio o estatuto LCH, ou assinaram entretanto novos contratos de arrendamento, ficando a partir daí à mercê da fúria especulativa.
Argumenta-se, ainda, que uma reavaliação do imóvel pode caucionar o aumento exponencial de renda que o regime do LCH não permite. Desconheço se é verdade, mas custa a crer que o seja.
De qualquer forma, que a futura Assembleia da República (AR) proceda a uma nova alteração do regime para as lojas com história, por forma a dificultar, na medida do possível, esses subterfúgios legais e contradições várias, sob pena de o regime criado em 2017 ser letra morta.
4. Lojas Com História
Estou desde a primeira hora no conselho consultivo do Lojas Com História, e fui dos muitos que contribuíram, ainda que de forma indirecta (Círculo das Lojas de Comércio e Carácter e Tradição de Lisboa e petição à AR), para o seu nascimento, e por isso assisti ao imenso carinho e empenho dos sucessivos presidentes de CML e vereadores do pelouro, e da equipa do programa, para com o projecto, as lojas classificadas, e para que tudo desse certo.
Não deu. Corrijo: não está a dar. E se continuarmos como até aqui, será um fracasso. A palavra é forte, mas não vejo outra. Um programa que perde 25 lojas emblemáticas entre 2015 a 2023, quando se supunha serem lojas garantidas até 2027, mínimo, é um flop. De que serve serem classificadas 50, 100 novas lojas, de inevitável bitola inferior, se perdemos 25 das mais emblemáticas?
O LCH é, em primeiro lugar, uma distinção, um galardão. Com essa distinção pretende-se puxar pela auto-estima do dono e dos funcionários da loja, motivá-los, incutir-lhe maior orgulho nela, para que tudo façam por ela e evitem que feche portas. Por isso se afixa uma placa LCH na fachada, a loja e os seus aparecem em livros e revistas, em programas de rádio e de TV, entram em itinerários culturais e turísticos.
Aplaudi efusivamente a intervenção directa do então vice-presidente da CML, em 2017, que garantiu a continuidade da Tabacaria Martins. O mesmo fiz quando os responsáveis da CML intervieram oficiosamente no salvamento da Ginjinha Sem Rival, em 2014. Mas soube e sabe a pouco.
A passividade da CML relativamente aos casos recentíssimos das sapatarias Deusa ou Lord, da André Ópticas, Óptica do Chiado, Ramos & Silva, Casa de Sementes Soares & Rebelo, Casa Achilles ou Ourivesaria Araújos, por exemplo, lembra, infelizmente, a postura da CML em 2009, perante o fecho da Vitorino Silva, o último correeiro da Rua dos Correeiros, em que deixou que um hotel, de qualidade média, deitasse fora uma loja-símbolo como aquela, só porque queria estender o futuro átrio do hotel para o espaço da loja. Triste e ridículo, desde logo por não se saber que uma loja histórica só beneficia um hotel.
Por isso, quando a cidade está em risco de ficar efectivamente mais pobre porque estão em causa lojas incontornáveis, há que decidir rapidamente e agir com determinação e músculo. E aqui entram em jogo a mediação, mas também um mecanismo que está ao dispor do Estado e das autarquias, mas raramente ou nunca é usado: a compra ou a expropriação da loja.
Defendo que nos casos em que as lojas em perigo são demasiado importantes para a cidade — pela sua longevidade, pela sua singularidade, pela valia arquitectónica, decorativa e histórica, pela relação de afectividade com os lisboetas, a CML (no caso presente) pode invocar o interesse público e tomá-las para si, arrendando-as a terceiros, mantendo a actividade.
Actualmente, apenas já só temos meia dúzia que justifiquem expropriação: a Caza das Vellas Loreto, a Livraria Ferin (que fechou em Dezembro), Luvaria Ulisses, Ourivesaria Aliança, Retrosaria Bijou, Tabacaria Mónaco. Por isso, não será um investimento tão grande assim. Nos casos em que não se justifique a expropriação, a CML poderá sempre compensar o senhorio pelo aumento de renda que a loja classificada como LCH não consegue suportar, apesar da protecção legal, e que o senhorio exige, pagando a este último o diferencial da renda.
A CML faria toda a diferença se o fizesse, por uma vez que fosse. E fizesse bom uso da sua competência para agir em conjunto com as associações comerciais e escolas profissionais, por forma a possuir uma “bolsa de empreendedores” nos casos em que a actividade, o métier, estiver sem continuadores.
Ao programa LCH cabe também andar na rua, passar periodicamente nas lojas, falar com quem lá está, sobre a saúde da loja, sobre as eventuais ameaças e as intenções dos senhorios. É imperativo ao LCH antecipar-se à entrada de projectos urbanísticos ameaçadores, tão importante quanto o conselho, o músculo jurídico, quando o projecto já estiver em apreciação.
E, por favor, agora que está para breve a colocação em discussão pública do projecto de novo Regulamento do LCH, alterem os critérios de atribuição do estatuto LCH, de modo a que, como disse, e bem, o anterior presidente da CML, quando alguém entre numa LCH a reconheça imediatamente enquanto tal. Ou seja, a componente material da loja (arquitectura, decoração interior, fachada) tem que ter um peso substancialmente maior na fórmula que atribui a classificação. Não podemos ter lojas classificadas que têm paredes de pladur, tectos falsos com focos de luz, pisos de pedra de lioz brilhante, montras ou portas de alumínio; lojas que são LCH por apenas terem mais de 25 anos e património imaterial, porque, pelo andar da carruagem, qualquer dia temos o primeiro McDonald’s de Lisboa como LCH.
E não confundamos Lojas com História com lojas antigas, velhinhas ou de bairro. Pode haver perfeitamente um outro programa de apoio ao comércio de bairro, parecido com o LCH, talvez até gerido pelas juntas de freguesia, mas não confundamos os patamares.
As lojas históricas são cada vez menos, mas é possível salvar as que restam. A responsabilidade é de todos, a começar pela dos lojistas.
Lisboa, 8 de Janeiro de 2024
Presidente do Fórum Cidadania Lx