O que a tinta verde explica sobre a esquerda do século XXI

A reação morna da esquerda ao ataque contra Luís Montenegro, perpetrado por um ativista climático, demonstra o problema sistémico da esquerda portuguesa no século XXI.

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Nelson Garrido
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“O que podemos estar a testemunhar não é apenas o fim da Guerra Fria (...), mas o fim da História como tal: isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da ideologia da democracia liberal ocidental como forma final de governação humana.” Foi com estas palavras que, em 1989, Francis Fukuyama pressagiou o momento social vigente, e não consegui não pensar nelas quando vi o ataque com tinta verde a Luís Montenegro e as consequentes reações dos seus adversários políticos.

O leitor deverá estar a perguntar-se qual será qual a correlação entre uma teoria política do século XX e um ataque ao estilo Kids Choice Awards. Assumo, desde já, que sofro da maleita crónica da esquerda de intelectualizar até os acontecimentos mais mundanos. Mas se o leitor me der o benefício da dúvida, acompanhe-me.

Com o fim da História, o capitalismo venceu. O socialismo (e consigo o Partido “Socialista”) não se trata agora mais do que um exercício de semântica — e o eleitorado sabe-o e esta questão arrasta-se para todos os espaços da esquerda. Não havendo ideologias que se oponham ao capitalismo, não há exigências que obriguem o sistema capitalista a fazer um exercício de compromisso. Logo, a única solução que resta à antiga esquerda é a de se subjugar ao sistema capitalista, para se manter relevante dentro dele.

Isto implica que, não sendo pelo menos cúmplices, são no mínimo vítimas das suas circunstâncias: os militantes da “esquerda”, integrados no capitalismo, não têm nenhuma opção senão a de ser conivente com o mesmo sistema que propõem combater. Paradoxal, certo? É por isso que a esquerda, no espaço político, faz sempre uma enorme ginástica para não ser acusada de hipocrisia, e sente uma tremenda dificuldade em doutrinar posições ideológicas de “esquerda” quando já perdeu, a priori,​ a luta ideológica.

Assim sendo, o que resta à esquerda é a de assumir uma posição estéril, capitalista de facto: a luta é feita nas horas úteis, de uma forma serena. “Pode não revogar o meu direito à IVG se não for muito incómodo?”

Pensando na esquerda parlamentar, estão reféns desta situação que o século XXI lhes trouxe e aí ficarão. Assim vamos caminhando em direção a um progressivo afastamento entre os partidos de esquerda e a os movimentos orgânicos de luta. Por isso, quando um ativista climático atira um balde de tinta verde ao líder da coligação da AD, Luís Montenegro, eu uso a reação da líder do Bloco de Esquerda como exemplo do meu argumento: “O ataque de hoje ao PSD é um ataque à liberdade na campanha eleitoral e portanto à democracia. Se os autores desta ação alegam uma causa justa, então são os piores defensores dessa causa”, escreveu no X (antigo Twitter).

Claro que não terá sido nada simpático ter ficado com tinta verde incrustada no couro cabeludo, mas Malcolm X, Rosa Luxemburgo e iguais figuras emblemáticas das lutas do século XX ficariam no mínimo surpreendidos ao tomar conhecimento desta reação a um ataque… com tinta. É assim tão ultrajante estragar um fato quando olhamos para a desgraça iminente das alterações climáticas?

Não sou particular simpatizante da esquerda revolucionária, mas é inevitável olhar para a esquerda do presente com saudosismo, como, acredito, quase todos os eleitores de esquerda o fazem, a avaliar pelas reações incrédulas dos simpatizantes do Bloco a este comentário de Mariana Mortágua. Percebo e sinto-me solidária com o condicionamento a que a esquerda parlamentar está sujeita — mas, muitas vezes, dá uma terrível sensação de luta perdida quando se vota à esquerda.


Texto alterado às 14h14 do dia 1 de Março de 2024 para retirar uma frase do texto original que foi considerada plágio.

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