O misterioso “herbário de peixes” brasileiros do século XVIII

E se, em vez de plantas, um herbário tivesse peixes? Esta é a história de um herbário de peixes do Brasil com mais de 200 anos – em seis partes. E também a do primeiro ictiólogo da América do Sul.

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Thiago Semedo
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O enigma, primeiro. Quem teria sido realmente o autor de uma colecção de peixes do Brasil do século XVIII, preservados com uma técnica singular — de que restam pouquíssimos exemplos em todo o mundo — e que hoje está dispersa por museus de Lisboa, Coimbra e Paris? As suspeitas principais recaíam no naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira. Afinal, durante nove anos, entre 1783 e 1792, percorreu o Brasil, da Amazónia ao Mato Grosso, numa expedição lendária que ficaria conhecida como Viagem Philosophica.

A ideia de que esses peixes faziam parte das colecções reunidas por Alexandre Rodrigues Ferreira nunca foi verdadeiramente escrutinada, até que novos detectives de colecções antigas vieram desfazer o mistério — e dizer, por fim, de forma taxativa que não foi ele.

I – A técnica

Os 90 exemplares da colecção ictiológica do Brasil foram preparados com uma técnica que ficou conhecida por “herborização de peixes”. Uma pista histórica ia no sentido das suspeitas iniciais: essa técnica tinha surgido no século XVIII, coincidindo com a época da viagem pelo Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) — daí apontar-se para ele —, durante a qual enviou milhares de exemplares para Portugal.

Popularizada por um naturalista neerlandês (Johan Frederik Gronovius), a técnica da herborização de peixes tinha como finalidade preservar animais colectados em expedições naturalistas, para os enviar posteriormente para museus, numa altura em que não abundavam líquidos de preservação dos espécimes nem as viagens pelo mundo eram fáceis. A palavra “herbário” faz pensar em plantas, mas elas, na verdade, não têm lugar aqui.

“Os peixes herborizados eram preparados como se preparava um herbário de plantas: essencialmente, era a prensagem da pele do peixe numa folha ou numa cartolina tal qual se faz num herbário com as plantas”, explica o biólogo Luís Ceríaco. Não necessitava de muitos recursos e era de fácil execução: o animal era dividido ao meio, removiam-se as vísceras e as espinhas, e a pele era cuidadosamente separada da carne.

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Um dos exemplares do herbário de peixes na Academia das Ciências de Lisboa Daniel Rocha

Por outras palavras, tratava-se da preservação da pele seca dos peixes, ou melhor, de um dos seus lados. “A pele era colada à cartolina, prensada e ficava a secar. Alguns naturalistas colocavam um verniz por cima”, conta o biólogo português. “Ficávamos com uma visão lateral do animal.” Além disso, estes exemplares cabiam num espaço muito pequeno, o que facilitava o transporte, ao contrário do que aconteceria se se preservasse o corpo inteiro do animal em frascos com líquido ou montados pela técnica da taxidermia.

“Na primeira metade do século XIX, esta técnica desapareceu. Na altura em que se usava, o acesso a líquidos de preservação — álcool e formol — não era fácil. A partir do momento em que as expedições começaram a ter mais recursos, privilegiaram-se técnicas que preservavam o animal completo”, contextualiza Luís Ceríaco, investigador que, ter-se-á porventura já intuído, é um dos novos detectives que conseguiram identificar agora o autor da colecção dos 90 peixes herborizados do Brasil.

Biólogo do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto e da Associação Biopolis, bem como investigador convidado do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luís Ceríaco é um estudioso de colecções de história natural, ou não tivesse a sua tese de doutoramento, em 2014, incidido sobre estas colecções portuguesas entre os séculos XVIII e XX, com o título Zoologia e Museus de História Natural em Portugal.

A herpetologia é a grande paixão de Luís Ceríaco, que aos 36 anos conta no currículo com a descoberta de 42 espécies novas para a ciência, principalmente de répteis e anfíbios de África — incluindo sete espécies de lagartixas de Angola divulgadas já neste ano numa publicação científica, entre as quais, duas a que se atribuíram nomes científicos em honra dos naturalistas David Attenborough e Edward O. Wilson (Trachylepis attenboroughi e Trachylepis wilsoni).

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O biológo português Luís Ceríaco fotografado na Academia das Ciências de Lisboa Daniel Rocha

II – A descoberta do herbário

Poucos exemplos de “herbários de peixes” são hoje conhecidos a nível mundial. Entre os casos mais famosos, destacam-se as colecções do Museu de História Natural da Dinamarca, do Museu de História Natural de Paris e do Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard (Estados Unidos). Todas na ordem das poucas dezenas de exemplares. Outro exemplo é o da colecção enigmática de peixes do Brasil que nos traz aqui, actualmente dispersa por museus de Lisboa e Coimbra e (sabe-se também) de Paris.

Originária do Real Museu de História Natural da Ajuda, ou Real Gabinete da Ajuda, criado na segunda metade do século XVIII naquela zona da cidade de Lisboa (em 1768), a colecção de peixes herborizados do Brasil viria mais tarde, por circunstâncias da história, a ficar espalhada por vários sítios e a perder-se-lhe o rasto.

Apenas no início deste século seriam localizados os exemplares presentes em Portugal. Primeiro, encontraram-se 18 espécimes no Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa (ACL). Em 2003, os paleontólogos Miguel Telles Antunes (actual director do Museu Maynense da ACL) e Ausenda Balbino (professora da Universidade de Évora) publicavam uma breve descrição e um catálogo ilustrado desses 18 espécimes.

Cerca de oito anos mais tarde, em 2011, o museólogo Pedro Casaleiro e colegas anunciaram a descoberta de outros 68 espécimes no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Estavam guardados numa grande caixa, em folha-de-flandres, debaixo dos degraus do anfiteatro de história natural. “Não se sabia que estava ali”, recorda Luís Ceríaco.

Estavam localizados os 86 exemplares de peixes herborizados do Brasil guardados em Portugal. Tanto os investigadores que descreveram a descoberta deste herbário de peixes como aqueles que viriam depois a lidar com os seus exemplares, incluindo inicialmente Luís Ceríaco, atribuíam a origem da colecção ao Real Gabinete da Ajuda e, em particular, à Viagem Philosophica de Alexandre Rodrigues Ferreira.

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Exemplares do herbário de peixes no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra Thiago Semedo

Numa palestra na Academia das Ciências de Lisboa, em Fevereiro, Luís Ceríaco partilhou as últimas descobertas sobre esta colecção peculiar, que meses antes, em Dezembro, tinham sido relatadas num artigo à comunidade científica, na revista Zootaxa, pelo biólogo em conjunto com outros colegas portugueses e brasileiros.

“Tem-se considerado que tanto os espécimes na Academia das Ciências de Lisboa como do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra fazem parte da mesma colecção original devido às semelhanças nas técnicas de preservação, na apresentação estética global e na caligrafia”, escrevia a equipa luso-brasileira no artigo científico na Zootaxa. “Como eram peixes brasileiros e do século XVIII, assumia-se que seriam originários das viagens filosóficas de Alexandre Rodrigues Ferreira”, completa ao PÚBLICO Luís Ceríaco.

III – A pista

No entanto, a dado momento, o biólogo português começou a suspeitar de que os 86 espécimes em Portugal poderiam não ser originários da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira, como recorda o artigo científico. Estranhava, por exemplo, não haver referências ao uso da técnica de herborização de peixes nessa expedição.

Aliás, em 2014, na sua tese de doutoramento, Luís Ceríaco até chegou a avançar, pela primeira vez, a hipótese de o colector e dono original da colecção de peixes herborizados do Brasil existentes em Portugal ter sido outro luso-brasileiro, figura igualmente importante na história natural do Brasil no século XVIII, o frei José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811). Era então “apenas” uma hipótese.

Somente no ano passado surgiria uma pista a favor de Conceição Veloso como autor da colecção. Luís Ceríaco lia um livro editado no Brasil sobre este naturalista quando se deparou com a referência à descoberta de um manuscrito de Conceição Veloso na Biblioteca Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro.

Esse manuscrito é a Ichthyologia Fluminensis, obra que ficou inédita até hoje, dedicada aos peixes da zona litoral da região fluminense, que se localiza no estado do Rio de Janeiro. A existência de tal manuscrito vinha mencionada, de forma breve, no livro Frei Veloso e a Tipografia do Arco do Cego, de 2019, organizado pelos historiadores de ciência Ermelinda Moutinho Pataca (da Universidade de São Paulo) e Fernando José Luna (da Universidade Estadual do Norte Fluminense).

“Nesse livro sobre o frei Veloso, uma das autoras refere que esse manuscrito está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. É a primeira vez que o manuscrito é citado, mas não foi explorado nem trabalhado”, reforça.

Nada se sabe, ainda hoje, das andanças anteriores da Ichthyologia Fluminensis. Nem quem a localizou na Biblioteca Nacional do Brasil. Nem quando. Nem o livro de 2019 sobre Conceição Veloso fazia qualquer referência à colecção de peixes herborizados do Brasil. Apenas se falava nesse livro de um manuscrito deixado por aquele naturalista sobre os peixes fluminenses, sem indicação do conteúdo do documento nem sequer do número de páginas. “Até agora, o manuscrito não se conhecia nem tinha sido estudado. Nem a ligação entre o manuscrito e o herbário de peixes tinha sido feita”, resume Luís Ceríaco.

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A primeira página e uma página interior do manuscrito Ichthyologia Fluminensis, obra inédita até hoje e que se revelou crucial para deslindar o caso do herbário de peixes do Brasil Biblioteca Nacional do Brasil

Era, no entanto, a pista tão necessária. Permitiu pôr em campo um grupo de cinco cientistas de Portugal e do Brasil, os tais novos detectives de colecções de história natural antigas, que inclui o brasileiro Cristiano Moreira, curador das colecções ictiológicas do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Já com a suspeita de que os peixes herborizados seriam obra de Conceição Veloso, o ictiólogo brasileiro foi consultar e fotografar a Ichthyologia Fluminensis, para que toda a equipa pudesse analisar este manuscrito de 157 páginas e estabelecer uma relação, caso se verificasse, entre o documento recém-descoberto e o herbário de peixes. Finalmente, iam pôr-se à prova as dúvidas que pairavam relativas a Alexandre Rodrigues Ferreira como colector do herbário de peixes.

“Essas dúvidas começaram a ser levadas mais a sério quando eu e o Cristiano olhámos para os exemplares do herbário: a grande maioria dos peixes é costeira e marinha, o que era estranho para Alexandre Rodrigues Ferreira”, desvenda Luís Ceríaco.

Isto porque, ao revisitar os exemplares da colecção da Academia da Ciências de Lisboa e do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, a equipa luso-brasileira começou por identificar cada uma das espécies de peixes do herbário. “A partir do momento em que sabemos a espécie, sabemos a sua distribuição geográfica e se veio do Amazonas ou não”, explica.

“O principal enfoque da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira foi nas bacias do rio Amazonas e do rio Paraguai, até ao Pantanal. A expedição é feita na sua grande maioria por rios. Mas os peixes do herbário são marinhos. Os poucos de água doce que sobreviveram no herbário são espécies que não ocorrem na bacia do Amazonas e são limitados às bacias hidrográficas entre o Rio de Janeiro e São Paulo”, acrescenta o biólogo sobre o que não batia certo.

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“Embora muitos dos peixes marinhos [no herbário] tenham distribuição em toda a costa brasileira, algumas espécies do sul têm a sua distribuição geográfica máxima a norte até à zona do Rio de Janeiro. Não existem mais para cima, na zona de Belém do Pará, onde se iniciou a expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira. A própria biologia e distribuição geográfica dos exemplares já nos indicava que não podiam ter sido colectados por Alexandre Rodrigues Ferreira, porque eram peixes de zonas onde ele nunca tinha estado”, clarifica.

Portanto, há uma discrepância entre as características dos peixes do herbário e a geografia da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira — nascido na então São Salvador da Bahia (agora Salvador, no Brasil) e que se formou na Universidade de Coimbra.

O manuscrito veio assim constituir-se como a peça decisiva. “O que veio provar que a colecção era do frei Conceição Veloso é a descoberta do manuscrito na Biblioteca Nacional do Brasil. O manuscrito tem uma lista de todos os peixes que ele colectou e a sua descrição. O manuscrito e o herbário são parte da mesma criação”, resume Luís Ceríaco. “Com isto, encerrámos o caso.”

IV – O “pai” da botânica do Brasil

De ausente no caso do herbário de peixes do Brasil a seu protagonista — eis José Mariano da Conceição Veloso, nascido a 14 de Outubro de 1742 no Brasil enquanto colónia portuguesa, na vila de São José del-Rei (actualmente Tiradentes), no estado de Minas Gerais.

“Estudou Teologia e fez-se frade no Brasil. Enquanto esteve lá, foi das personagens mais activas no estudo da história natural brasileira. É conhecido por ser o ‘pai’ da botânica brasileira”, descreve Luís Ceríaco. “Na década de 80 do século XVIII, fez um grande herbário da região fluminense. Esse levantamento da flora deu origem à obra Florae Fluminensis.”

Este trabalho de botânica é uma das grandes obras, bem conhecida, deste naturalista luso-brasileiro. “A Florae Fluminensis foi preparada para impressão, mas nunca foi publicada em tempo de vida do frei Conceição Veloso, só postumamente, já no século XIX. Afigura-se como a primeira grande obra de botânica do Brasil e a primeira grande obra de história natural de um brasileiro”, destaca Luís Ceríaco.

É na Biblioteca Nacional do Brasil que está guardada a Florae Fluminensis, tal como a recém-conhecida Ichthyologia Fluminensis, peça que se revelaria crucial na história científica do herbário de peixes do Brasil.

Sobre a vida de Conceição Veloso, o artigo na revista Zootaxa dá pormenores do que foi o vaivém do naturalista entre o Rio de Janeiro e São Paulo.

Aos 19 anos, em 1761, iniciava a vida eclesiástica no Convento de São Boaventura do Macacu (actual Itaboraí), no estado do Rio de Janeiro. Depois mudou-se para o Rio de Janeiro, para o Convento de Santo António, onde estudou Filosofia e Teologia. E daí, em 1771, foi enviado como missionário para o Convento de São Paulo, incumbido de ensinar Geometria a soldados estacionados numa vila indígena. Dez anos depois, recebia ordens do governador da capitania de São Paulo para colectar espécimes de história natural com o propósito de os enviar para Lisboa.

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Exemplar do herbário de peixes na Academia das Ciências de Lisboa Daniel Rocha

O vaivém do frade franciscano continuou. Ainda no início da década de 1780, regressava ao Rio de Janeiro, para dar aulas de História Natural no Convento de Santo António. Começou aí a acumular uma colecção de história natural bastante rica, incluindo um herbário, conta-se no artigo. “Dada a sua experiência e interesse no estudo da história natural brasileira, em 1783 foi contratado por Luís de Vasconcelos e Sousa, vice-rei do Brasil entre 1779 e 1790, para realizar o primeiro levantamento oficial de botânica do estado do Rio de Janeiro e colectar espécimes de história natural para enviar para Lisboa.”

Durante sete anos, de 1783 a 1790, Conceição Veloso organizou expedições nas matas do estado do Rio de Janeiro acompanhado por vezes por grande apoio de pessoal militar e de logística, bem como por dois frades, um responsável pela descrição das plantas e outro pela sua preparação e ilustrações.

O ano de 1790 marca a vinda de Conceição Veloso para Portugal, aos 49 anos, acompanhando Luís Vasconcelos de Sousa, que tinha terminado as suas funções como vice-rei. “Trouxe consigo para Lisboa todas as colecções de história natural (incluindo o herbário, manuscritos e ilustrações da Florae Fluminensis) para serem depositadas nas colecções do Real Gabinete da Ajuda”, relata-se no artigo na Zootaxa.

Vinha com o objectivo principal de imprimir a Florae Fluminensis, cujos manuscritos incluíam a descrição de 1639 espécies de plantas em latim com as respectivas ilustrações, ainda que simples, representadas ao longo de 11 volumes, como referiam os investigadores Begonha Bediaga e Haroldo Cavalcante de Lima, do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, num artigo de 2015 no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas.

Assim que chegou a Lisboa, onde durante a década de 1790 viveu na casa de Luís Vasconcelos de Sousa, associou-se ao meio cultural lisboeta, como recordavam Begonha Bediaga e Haroldo Cavalcante de Lima, dedicando-se à classificação de espécies (de flora e fauna) no Real Gabinete da Ajuda e na (então designada) Academia Real das Ciências de Lisboa.

No entanto, a impressão da sua Florae Fluminensis era de tal magnitude — mais de duas mil pranchas — que necessitava do apoio da coroa portuguesa e de equipamentos e mão-de-obra que não existiam em Portugal, mas, sim, em Veneza. A coroa chegou a ordenar a impressão em 1792, mas o processo foi-se arrastando, o que, relatavam os dois investigadores brasileiros no artigo de 2015, provocou “inúmeros desentendimentos” e resultaria na expulsão de Conceição Veloso da Academia Real das Ciências de Lisboa.

“Como naturalista, será sempre o botânico autodidacta a quem um dia o poder político libertou dos rigores conventuais”, escreviam por sua vez, em 1999, os historiadores Maria de Fátima Nunes e João Carlos Brigola, da Universidade de Évora, “destinando-o a recolher espécies exóticas para o Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda e a herborizar a flora brasileira”.

“Mas o facto de não ostentar um percurso académico formal [como Alexandre Rodrigues Ferreira, formado em Coimbra] e o seu afastamento dos grandes centros europeus de produção teórica haveriam de pesar na avaliação crítica que os botânicos ‘profissionais’ formularam sobre a sua monumental Florae Fluminensis”, faziam notar os dois historiadores de Évora naquele artigo que fez parte do livro A Casa Literária do Arco do Cego: Bicentenário (1799-1801), editado em 1999 pela Biblioteca Nacional e pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. “A sua aceitação no meio científico lisboeta”, assinalavam, ficou marcada, além da exclusão da Academia das Ciências de Lisboa, “pela censura científica de [Félix de Avelar] Brotero à sua obra fitológica”.

Frustrado que estava o seu plano inicial de publicar a Florae Fluminensis, Conceição Veloso dedicou-se à edição e tradução de livros, em particular no tempo em que dirigiu a Casa Literária do Arco do Cego, criada pela coroa portuguesa para publicar livros técnicos e científicos. Entre 1799 e 1801, período em que existiu, a Casa Literária do Arco do Cego e a sua tipografia imprimiram mais de 80 obras.

Já a Florae Fluminensis apenas seria publicada no Brasil, muito depois da morte de Conceição Veloso. Os originais desta obra de botânica, como contavam Begonha Bediaga e Haroldo Cavalcante de Lima, estiveram desaparecidos até 1824 na biblioteca do Rio de Janeiro, quando um bibliotecário sugeriu a sua impressão. “O imperador da recente nação, D. Pedro I [D. Pedro IV de Portugal], vislumbrou na publicação da obra científica de um naturalista brasileiro uma forma de afirmação.”

Se parte das descrições botânicas foi publicada em 1825, a obra completa apenas veria a impressão em 1881 – “ou seja, 91 anos depois de finalizada”.

V – O zoólogo redescoberto

Quando chegou a Lisboa, Conceição Veloso tinha-se feito acompanhar de nada menos do que 70 caixotes de colecções, que seriam depositadas no Real Gabinete da Ajuda em 1790, o ano da chegada. Quanto ao herbário de peixes, em 1794 o inventário do Real Gabinete da Ajuda listava os exemplares que tinham dado entrada: 720 espécimes.

“A maioria dos espécimes herborizados existentes pode ser atribuída a espécies descritas na Ichthyologia Fluminensis, o que sugere fortemente que os mais de 700 exemplares preparados por Veloso e listados em 1794 no inventário do Gabinete da Ajuda foram a base do manuscrito”, concluíram Luís Ceríaco e colegas no artigo da Zootaxa. “Mais: esta hipótese é corroborada pelo facto de os nomes de várias espécies serem inéditos na altura, mas estarem presentes quer na Icthyologia Fluminensis, quer escritos directamente nas folhas [do herbário de peixes] que sustentam os espécimes. Além disso, os nomes comuns em português e em tupi antigo associados aos espécimes são os mesmos dados na Ichthyologia Fluminensis”, remata a publicação.

“Havia nomes científicos que nunca foram publicados”, completa Luís Ceríaco. “Eram nomes novos, o que indica que o frei Veloso reconheceu aquelas espécies como novas e deu-lhes um nome. Os nomes no herbário e no manuscrito são os mesmos”, diz.

“Com a investigação que fizemos, acrescentámos uma outra faceta naturalista ao frei Veloso: além de botânico, era zoólogo. O herbário de peixes e a obra que o acompanhava, a Ichthyologia Fluminensis, mostram que tinha o mesmo interesse pela zoologia — neste caso pelos peixes — que tinha pela botânica”, salienta Luís Ceríaco. “Agora temos uma obra de Conceição Veloso puramente ictiológica de raiz. Também fez um livro sobre as borboletas da zona fluminense. Estamos a redescobri-lo como zoólogo nestes últimos anos. Já havia algumas indicações no passado, mas agora foi redescoberto como autor de uma obra zoológica mais coerente.”

É esta nova faceta que Cristiano Moreira também quer destacar. “Apesar de ter a sua importância reconhecida na botânica brasileira, o frei Veloso era praticamente desconhecido na área da ictiologia. Isto porque a autoria dos exemplares colectados por ele não foi reconhecida até agora e pelo seu manuscrito Ichthyologia Fluminensis não ter sido publicado.”

Tal como não se sabe por onde andou a Ichthyologia Fluminensis nem quem a encontrou na Biblioteca Nacional do Brasil, também não há uma data exacta para quando terá sido elaborada. “Assumimos que foi escrita na mesma altura em que foi preparado o herbário de peixes — ou seja, na década entre 1780 e 1790.”

Os 720 exemplares do herbário de peixes ter-se-ão mantido no Real Gabinete da Ajuda até 1795, altura em que começaram a ser distribuídos por outras instituições às quais aquele, que era o maior repositório de colecções de história natural do país, fornecia materiais, como a Academia das Ciências de Lisboa e a Universidade de Coimbra.

Conceição Veloso considerou-o uma nova espécie e deu-lhe o nome de Labrus fluviatilis: só em 1824 os zoológos franceses Quoy e Garmard o descreveram como espécie nova com o nome Geophagus brasiliensis: é endémica da região do Rio de Janeiro Luís Ceríaco
Conceição Veloso chamou-lhe Silurus bagre: só foi descrito como espécie nova para a ciência, como Steindachneridion parahybae, pelo zoólogo austríaco Franz Steindachner: é endémica da bacia dos rios Paraíba do Sul e Jequitinhonha, no Sul do Brasil, onde Alexandre Rodrigues Ferreira nunca colectou exemplares Luís Ceríaco
Conceição Veloso identificou-o como Scomber scomber, mas só em 1978 este peixe foi descrito como novo para a ciência, como Scomberomorus brasiliensis, ou sororoca Luís Ceríaco
Conceição Veloso chamou-lhe Labrus coccineus, reconhecendo-o como espécie nova: só em 1860 veio a ser descrita formalmente como Bodianus pulchellus Luís Ceríaco
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Conceição Veloso considerou-o uma nova espécie e deu-lhe o nome de Labrus fluviatilis: só em 1824 os zoológos franceses Quoy e Garmard o descreveram como espécie nova com o nome Geophagus brasiliensis: é endémica da região do Rio de Janeiro Luís Ceríaco

A partir do início do século XIX, as colecções do Real Gabinete da Ajuda enfrentariam desafios de vária ordem, desde logo as invasões francesas de Portugal, entre 1807 e 1810. “Em 1808, o gabinete da Ajuda foi visitado pelo zoólogo francês Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, incumbido por Napoleão de Bonaparte de acompanhar a coluna militar francesa que invadiu Portugal e escolher e enviar para Paris todos os espécimes interessantes guardados nas colecções portuguesas”, recorda-se no artigo na Zootaxa. “Saint-Hilaire seleccionou quase 600 vertebrados, incluindo 100 peixes. Estes espécimes foram enviados para o Museu [Nacional de História Natural] de Paris, onde se mantêm hoje.”

E foi em resultado do saque nas invasões francesas que quatro peixes herborizados do Brasil, das colecções do Real Gabinete da Ajuda, acabaram em Paris. Em 2021, numa outra publicação, Luís Ceríaco punha já a hipótese de esses quatro exemplares pertencerem à colecção de Conceição Veloso. Suspeita que o novo trabalho, na Zootaxa, confirma igualmente.

Por fim, estavam localizados os 90 exemplares do herbário de peixes do Brasil que sobreviveram até aos dias de hoje: 18 em Lisboa, 68 em Coimbra e quatro em Paris. “São um património único a nível nacional e a nível mundial também são bastante raros”, nota o biólogo português. “Que se saiba, são os únicos peixes herborizados do Brasil”, realça.

“Do ponto de vista de um ictiólogo trabalhando com a fauna de peixes do Brasil, esta descoberta é extraordinária por diversos motivos”, reforça Cristiano Moreira. “O primeiro motivo são os exemplares em si, que estão entre os mais antigos peixes colectados nesta região e em óptimo estado, melhor do que muitos peixes colectados em outras regiões do mundo no século XVIII”, realça o cientista brasileiro.

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O ictiólogo brasileiro Cristiano Moreira DR

Sobre o destino do Real Gabinete da Ajuda, a seguir ao fim das invasões napoleónicas, em 1815, o museu passou tempos difíceis, até ser encerrado em 1836 e as colecções transferidas para o então recém-criado Museu Nacional de Lisboa, na altura albergado no edifício da Academia das Ciências de Lisboa. Aí permaneceu até 1858 — altura de nova transferência a uns quarteirões de distância, desta vez para a Escola Politécnica (onde agora é o Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa).

Os actuais 18 exemplares na Academia das Ciências de Lisboa terão ficado para trás durante a transferência das colecções em 1858, sugere a equipa luso-brasileira na Zootaxa. “Se alguns dos espécimes do herbário transferido para o edifício da Escola Politécnica em 1858 sobreviveram no século seguinte, perderam-se tragicamente no incêndio que destruiu essas colecções em 1978.”

Com as invasões francesas, deu-se a fuga da corte portuguesa para o Brasil em 1807. Conceição Veloso ter-lhe-á seguido os passos no ano seguinte. Doente, morreu em 1811, aos 69 anos, no Rio de Janeiro, no Convento de Santo António, onde se tinha recolhido. Parte do seu espólio seguiu para a (agora) Biblioteca Nacional do Brasil.

E a Ichthyologia Fluminensis ficou remetida ao esquecimento, durante mais de dois séculos.

VI – O epílogo (por ora)

Para Luís Ceríaco, o manuscrito de ictiologia e o herbário de peixes de Conceição Veloso exemplificam a qualidade da ciência no império português setecentista. “Estava ao nível do melhor que se fazia na época”, diz. A colecção de peixes é, por isso, muito mais do que uma “curiosidade”. “Torna-se um exemplo único, e bem detalhado, do que eram as práticas científicas do século XVIII, com particular interesse para a compreensão da ciência luso-brasileira”, destaca.

Entre as 58 espécies de peixes do herbário nos museus portugueses, 44 nem sequer estavam descritas para a ciência à época. “Se o manuscrito tivesse sido publicado, Conceição Veloso teria tido a prioridade na descrição dessas espécies e hoje chamar-se-iam pelo nome com que ele as nomeou”, salienta ainda Luís Ceríaco. “Como o manuscrito não foi publicado, essas espécies foram descritas ao longo dos séculos seguintes, algumas já no século XX. Isto mostra a importância científica para a época desta obra e dos peixes associados a ela: a ciência luso-brasileira do século XVIII não estava minimamente atrás de qualquer outra.”

A espécie de peixe descrita no século XX — em 1978 —, que o naturalista luso-brasileiro já tinha identificado como nova para a ciência quase 200 anos antes, é o Scomberomorus brasiliensis, ou sororoca.

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Descrição da espécie Labrus coccineus no manuscrito Ichthyologia Fluminensis, de Conceição Veloso, que a reconheceu como nova para a ciência e também recolheu exemplares dela para o seu herbário de peixes: só seria descrita formalmente em 1860 como Bodianus pulchellus Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

Também Cristiano Moreira considera que tanto o manuscrito como o material preparado por Conceição Veloso “estava no mesmo nível dos maiores ictiólogos do seu tempo”: “Caso tivesse sido publicado, alguns dos pescados de maior importância da nossa fauna teriam sido descritos por ele, nascido no Brasil, ao invés de outros ictiólogos europeus.”

Da parte do biólogo português, esta investigação põe um ponto final no caso, ou pelo menos no mistério de que zona do Brasil vieram os peixes do herbário e a quem pertenciam. “Isso está resolvido. O que pode acontecer é fazerem-se 1001 trabalhos posteriores.” Outros detectives de colecções antigas de história natural, ou os mesmos, podem querer retomar a investigação no ponto onde agora ficou.

Por isso, dizem Luís Ceríaco e Cristiano Moreira, é enganador assumir que os peixes deste herbário esgotaram as informações a dar-nos. Graças à evolução tecnológica, poder-se-ão extrair outras camadas de informação biológica destas colecções “que os colectores iniciais nem sonhavam”, como amostras de ADN e elementos químicos, que permitirão comparar as populações e a poluição do século XIX e actualmente, especifica o biólogo português: “Podem ser usadas para responder às perguntas que alguém tenha imaginação para fazer.”

Já o ictiólogo brasileiro considera que o facto de os exemplares do herbário estarem associados ao manuscrito que o frei Conceição Veloso estava a elaborar torna-os “ainda mais valiosos, já que adiciona outras camadas de informação, como informações etnográficas em relação a estas espécies, a sua pesca e nomes comuns em tupi antigo”.

O valor científico e histórico deste herbário de peixes tornou-se agora ainda mais claro. “Muito provavelmente são os peixes brasileiros mais antigos que sobrevivem em colecções de história natural de todo o mundo. E, quase me esquecia: o frei Conceição Veloso pode ser hoje reconhecido como o primeiro ictiólogo sul-americano”, remata Luís Ceríaco.

Do primeiro ictiólogo da América do Sul não existe, no entanto, qualquer retrato contemporâneo conhecido, que nos permita associar o nome a um rosto. Nem se sabe onde estão os seus restos mortais, porque o convento onde morreu sofreu muitas alterações nos séculos XIX e XX e as campas terão sido levantadas e desapareceram. Outros mistérios que persistem em torno de Conceição Veloso esperam por quem os desvende.

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