Nos esgotos carcerários do MPLA (II) - A necessidade de reconstruir o passado
O importante é resgatar com o tempo o testemunho singular destas vítimas, reconstruir os significados desse passado e integrá-los na memória colectiva.
Foi em clima de consternação e de terror provocado pelo vil “julgamento” de “Sotto” [de que se falou no texto anterior] que Angola, sob os ferros do autoritarismo e da violência, iniciou a sua caminhada como Estado emancipado. Como reza a sabedoria árabe, “quando o pastor entra em cumplicidade com os lobos, os cães deixam de ladrar”.
Maus presságios se encastelavam nos horizontes futuros do país. A primeira vítima foi a palavra logo sitiada pela vigilância policial. Pensar, enquanto actividade intelectual livre, instituiu-se como algo de proibitivo, em danosa excrescência desprezivelmente acatada por uma boa parte da classe pensante que silenciou e silencia até aos nossos dias. À medida que esta cruzada obscurantista avançou, termos como liberdade, democracia, equidade e justiça caíram em desuso e foram substituídos por um vocabulário proselitista e por pregões nacionalistas estridentes. Todos, sem excepção, tinham de se identificar com o diapasão ideológico do MPLA e com os seus símbolos e liturgias discursivas, tais como “Angola, trincheira firme da revolução em África” e outros ranços e anacronismos verbais.
Quem não alinhasse com estes rituais e com as “honras do triunfo” (assim chamadas pelos imperadores romanos na Antiguidade e que, no caso de Angola, se traduziam em espectáculos de culto a Neto) arriscava-se a ser desapossado do seu emprego e até preso. Para citar o escritor checo Jan Zabrana, “[…] todos os dias evacuam sobre as pessoas – desde a tribuna, da rádio ou da televisão – a merda das suas frases; é proibido emitir opiniões, a censura converteu-se em dona e senhora absoluta de tudo, a idolatria e a santificação dos assassinos não acaba nunca”[1]. Ou seja, por força desta asfixia o país virou um imenso espaço carcerário; deixou de se perceber o outro como humano, “diluíram-se as barreiras de qualquer sistema moral” por parte dos altos responsáveis do MPLA e do Estado.
Por outro lado, por ausência de restrições morais deixou de haver a mínima inibição ao assassinato, esfacelou-se o primado do Direito em favor do primado da ilegalidade e das espadas, regressou-se ao “limite de Auschwitz”, “esse terrível limite” de perversidade de que fala o filósofo Maurício Pilatowsky. Caiu-se na barbárie, no pesadelo[2]. Em nome da salvaguarda da “soberania” e do “respeito às leis”, praticaram-se as piores modalidades de repressão e criminalização que nenhum jurista virtuoso jamais terá dificuldade de enquadrar nos dispositivos da lei sobre delitos contra a humanidade. A situação vivida por milhares de pessoas que suportaram a acusação de serem culpadas sem jamais se lhes ter dado o direito à presunção de inocência configurou, na verdade, uma situação jurídica aberrante, mesmo tendo em conta o facto de o poder político de então invocar a necessidade de se acautelarem riscos à segurança nacional.
Uma das questões centrais nos anais da jurisprudência de qualquer Estado digno desse nome é o princípio da clemência que as novas autoridades de Angola ignoravam ou simplesmente jogaram no caixote do lixo. Aliás, já haviam demonstrado tal desprezo durante o combate pela emancipação nacional. A partir de então, ignorou-se tudo, até o passado de antigos companheiros de luta encarcerados anos a fio sem processo judicial. A todos se humilhou de forma atroz, adjudicando-se a militares estrangeiros o serviço sujo de os torturar. Encargo medonho deixado por conta dos expedicionários de Fidel Castro, os quais na penitenciária de São Paulo, em Luanda, iguais a uma confraria de endemoninhados, infligiram em 1976 os piores suplícios a personalidades da Revolta Activa e mais tarde igualmente aos perseguidos ilegais do 27 de Maio.
Ao declarar que não iria perder tempo com julgamentos, Neto imitou Hitler na sua pulsão de encher as prisões e os campos de concentração com inimigos reais ou inventados. Dizia o ditador alemão: “Teríamos muito que fazer, se quiséssemos gastar o nosso tempo com processos judiciais. Não posso confiar nos senhores juristas. É muito mais prático mandar alguém para a prisão […] sem nos metermos em papeladas […]. É um direito que me assiste. Sou o meu próprio ministro da Justiça”[3].
Gentil Ferreira Viana (†), diplomado em Direito e figura histórica do MPLA desde os idos de 1960, terá sido talvez de todos os presos daquele grupo dissidente o que mais padeceu às mãos dos verdugos cubanos e dos seus métodos de internacionalização da violência. Esta súcia de soldados um dia constrangeu-o a entrar à força na respectiva cela e, não o conseguindo, agrediram-no repetidamente à coronhada. De tanto o espancarem, amassaram-lhe o rosto e obliteraram-lhe uma vista, mesmo assim não lhe quebraram o ânimo, Viana resistiu a entrar por saber que o queriam matar lá dentro. Gritou o mais que pôde de modo a ser ouvido noutras celas e insultou os seus algozes.
Diante deste e doutros graves acontecimentos (que ficam aqui por narrar mais extensamente dados os estreitos limites do jornal), pode dizer-se que para Neto “[…] o exercício violento da autoridade era como uma velha jaqueta de caça [citando o escritor e filósofo alemão Ernst Jünger], tanto mais confortável quanto mais empapada estivesse de lama e sangue”[4]. A partir desse momento a violência totalitária no MPLA exacerbou-se e tornou-se estrutural com reflexos sinistros na condução do Estado.
Sinto-me igual a Dante Alighieri na descrição que faz na Commedia sobre o fundo do Universo quando se confessa perturbado e privado dos mais acertados “poderes de expressão” para compor as cenas de horror que ia observando à medida que descia até às profundezas das últimas regiões do Inferno[5]. Em todo o caso, vou fazer como ele, espremer um pouco mais a polpa desta história e oferecer um relato mais forte e esclarecedor do mundo carcerário do MPLA e das torturas e selvajarias praticadas pelos cubanos contra os membros da Revolta Activa.
Encerrados em compartimentos sem janelas e continuamente submetidos a todo o tipo de abusos psicológicos e maus tratos físicos, alguns desses reclusos foram mantidos isolados por períodos intermitentes e sujeitos, por exemplo, à privação de sono, dia e noite, por meio de ruídos de elevada intensidade emitidos por aparelhos de som. Um deles, Fernando Castro Paiva Júnior [“Kabutei”], saiu de lá com danos físicos irreparáveis, as roupas ensanguentadas e psiquicamente abalado para o resto da vida. As sanitas das celas não tinham qualquer serventia, estavam entaipadas de cascalho, balas cruzadas e excrementos; os prisioneiros só podiam utilizar as latrinas situadas num recinto à parte, mas por lhes ser negado o acesso a elas defecavam e urinavam no chão dos próprios aposentos, onde conviviam fisicamente com esta imundície. Durante dias a pestilência colava-se-lhes aos corpos e assim permaneciam sob o olhar trocista dos carrascos. Mesmo quando tomavam banho, os cubanos possuídos de uma satisfação impudente plantavam-se perto dos chuveiros, de armas aperradas, e entretinham-se com um humor acanalhado a humilhá-los com piadas e alusões de carácter sexual que feriam a sua honra varonil. Uma situação peculiar em regimes ditatoriais que “[…] quase sempre [como lembra Cristina Fridman, socióloga argentina, especialista em educação sexual] exercem as suas políticas de violência e tortura sobre as nossas sexualidades”[6].
Direitos mínimos como assistência médica e exames hospitalares não existiam. Inconformados com a sordidez de tantos castigos, médicos da Argélia e da RDA reagiram deixando clara a sua desaprovação. De imediato se instalou entre eles e os cubanos uma atmosfera de visível mal-estar. Em todo o caso, foi no clímax deste estado de tensão que, aos poucos, se autorizou que os presos fossem levados ao Hospital Militar para se tratarem. Entretanto, o que lá viram estarreceu-os, dir-se-iam visões do Inferno de Dante. Alguns detidos de outros presídios comiam fezes e definhavam no sector dos tuberculosos já exauridos de qualquer réstia de humanidade. Um processo de sofrimento e desintegração comum nos calabouços da DISA. Após meses de exposição a estas monstruosidades, alguns quadros da Revolta Activa começaram a sentir-se idiotizados e a duvidar da própria sanidade mental.
Jazer naqueles antros condenado pelo arbítrio ou amontoado com centenas de outros “futuros cadáveres” sem saber se se chegaria vivo à manhã seguinte (como no 27 de Maio), cristalizava sem dúvida o mais negro dos flagelos. O sofrimento e o desespero não tinham limites, ninguém o escondia. Contudo, por vezes, um ou outro prisioneiro, incapaz de suportar a horrível incerteza do tempo ou a “quotidianidade do horror”, ia-se abaixo, desfazia-se em lágrimas. O “tédio sombrio da espera e do medo” (parafraseando Muñoz Molina, escritor espanhol), mas sobretudo o medo da morte, corporificava uma dor pungente para quem era apontado como réprobo e posto fora da sociedade, como aconteceu a milhares de indivíduos. Uma dor que “dura mais tempo”, na expressão de Jorge Semprún, também ele escritor espanhol, vítima do nazismo no campo de concentração de Buchenwald; uma dor inexprimível como se a vida tivesse fugido de cada uma daquelas pessoas e as fizesse sentir-se imersas nas sombras da morte. À força de tanto esperar pelo fim trágico, perdia-se a capacidade de resistência; perdia-se, em suma, o medo à morte; entrava-se, como diz Nadiezhda Mandelstam, escritora russa, “[…] na esfera da não existência”[7].
Adianto mais dois detalhes. Nos esgotos do MPLA as enxovias não tinham janelas, a não ser postigos bastante altos através dos quais os presos podiam ver a luz do dia nascer e extinguir-se; ou ver ainda os espectáculos diários de horror e sadismo encenados no pátio pelos anjos da morte que esbofeteavam os prisioneiros e os golpeavam com as suas botas; e ver outrossim o cortejo fúnebre de companheiros algemados a serem conduzidos todos os dias, altas horas, para destinos desconhecidos, donde não voltavam mais. A recordação de tão infames injustiças permite hoje a cada sobrevivente afirmar: “do inferno posso eu falar porque estive lá”. E eu, autor destas linhas, também estive lá.
Curiosamente este acervo de brutalidades e manipulações psicológicas ocorridas no reino de Agostinho Neto (que os seus apóstolos e fariseus persistem em desmentir como falsas) devolvem-nos à memória os processos adoptados pela CIA [Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos] e pelos marines norte-americanos em cadeias secretas e em campos militares de detenção no Iraque, no Afeganistão e em Guantánamo contra prisioneiros indefesos acusados de “terrorismo”. Em face deste tenebroso historial, o importante é resgatar com o tempo o testemunho singular destas vítimas, reconstruir os significados desse passado e integrá-los na memória colectiva de maneira a ter-se uma perspectiva correcta e isenta de partidarismos sobre os anos pavorosos da ditadura netista. Neto realmente não se pautou pelo respeito à justiça e pela defesa dos direitos e garantias dos cidadãos, antes pelo contrário, comportou-se como o tirano de Pádua (na peça teatral de Victor Hugo), o qual, apesar de se lamentar do seu poder terrível e inexorável, dizia que “nada me está proibido para castigar ou para perdoar tudo”.
- Jan Zabrana. Toda Una Vida [edición estabelecida, anotada y presentada por Patrik Ourednik], Tenerife, Editorial Melusina, 2010, p. 52.
- Mauricio Pilatowsky. “La Memoria Frente al Ocultamiento” [entrevista], Alfilo, n.º 5, Octubre-Noviembre, 2005, p. 2.
- Henrik Eberle & Mathias Uhl (Org.). O Livro de Hitler, Lisboa, Alêtheia Editores, 2006, p. 29.
- Ernst Jünger. Sobre as Falésias de Mármore [prefácio e notas de Rafael Gomes Filipe], Lisboa, Vega, 2.ª edição, 1987, p. 112.
- Barbara Reynolds. Dante, o Poeta, o Pensador Político e o Homem, Rio de Janeiro, São Paulo, Editora Record, 2011, pp. 307-308.
- Cristina Friedman. “El Alfabeto Erótico No Se Resume Al Coitocentrismo” [entrevista a Roxana Sandá], Las 12, suplemento de Página/12 [Buenos Aires], viernes, 7 de Mayo de 2010.
- Jorge Semprun. A Longa Viagem, Porto, Ambar, 2.ª edição, 2007, p. 33; Antonio Muñoz Molina. Sefarad, Entre o Nazismo e o Estalinismo, Lisboa, Editorial Notícias, 1.ª edição, 2003, p. 177; Nadiezhda Mandelstam. Contra Toda Esperanza, Memorias [prólogo de Joseph Brodsky], Barcelona, Acantilado, 1.ª edición, Noviembre de 2012, p. 63.