Festa de piscina

Tento andar sempre em frente porque tenho muito mais confiança na dianteira do que na retaguarda. Nunca sei bem como é que a parte de trás do meu corpo se comporta quando não estou a reparar.

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"Também eu tenho um verão desses em que as coisas mudaram" Ilustração: Rita Lagarto

Duas da tarde. Sol a pique. Cervejas frescas. Festa de piscina!

Os telemóveis estão hasteados como bandeiras sobre os rostos. Tiram-se selfies. O verão está hot. A atmosfera é light. Uma brisa smooth. As palavras emigraram, as frases têm todas dupla nacionalidade:

“Isso é top!”

What? Jura?”

Ya! É do best! “

“Mas completamente random…”

Está toda a gente despida. É uma festa de piscina. Eu estou de biquíni, mas movo-me como se tivesse um casaco de pele de urso numa festa do gelo em São Petersburgo. Ou um engenho de explosivos à cintura. Como naqueles sonhos em que acordamos de repente no meio do auditório da faculdade, do jantar de família ou da reunião de trabalho e estamos completamente destapados. Aqui é uma mistura de tudo isso: a festa de piscina inclui colegas de trabalho, faculdade e família dos anfitriões. Acordámos todos no mesmo pesadelo: o de circular entre desconhecidos protegidos apenas pela estreitíssima camada de licra e elastano. A sinceridade irremediável da nudez. Foi por isso que se inventaram as roupas. Os homens das cavernas não tinham frio. Tinham sensatez.

Tento andar sempre em frente porque tenho muito mais confiança na dianteira do que na retaguarda. Nunca sei bem como é que a parte de trás do meu corpo se comporta quando não estou a reparar.

As fisionomias à minha volta são vastas, pluriformes. E não só as dos rostos. As dos ombros, dos seios, das coxas, das barrigas, das axilas, as configurações dos pêlos, dos sinais, dos dedos, das unhas dos pés. E ainda as texturas, as tonalidades, as linhas limítrofes… A tensa fronteira entre a região lombar e o glúteo superior: essa zona de alto risco sujeita ao potencial perigo de um mau elástico nos calções de banho. O cunhado do anfitrião passeia displicentemente um espetáculo de fronteiras abertas, um espaço Schengen no fundo da coluna. Não o conheço e já sei mais sobre ele do que gostaria. Festa de piscina…

Engelho as sobrancelhas, os malditos óculos de sol não protegem o suficiente a visão. Engelho o pensamento a tentar espremer a lógica das regras sociais, que determinam que estejamos cobertos na maioria dos lugares, mas que nos possamos despir noutros… O pudor e as suas normas territoriais. Aqui o dress code é less is more, o ambiente é casual. Toda a gente simula descontração. Encenam-se gestos informais a disfarçar o embaraço. Na fronteira entre o desconforto e a euforia forçada, os semblantes tornam-se adolescentes. Comportamo-nos como teenagers.

Porque é que vim? Pergunto-me.

“O que é que a trouxe até cá?”, pergunta uma mini-eu de dois centímetros, vestida de guarda-fronteiriça, sentada no meu ombro direito.

“Não sejas boring. Vai ser divertido!”, responde a minha voz em miniatura de biquíni, no ombro esquerdo.

Olho em volta. Só as crianças se aventuraram na piscina juntamente com os mosquitos que vão morrendo na superfície da água com overdoses de cloro. As conversas são flácidas, os temas preguiçosos, os olhares circulam moles como as moscas entorpecidas pelo calor. O gelo do meu copo derrete. O meu ânimo derrete. Vou buscar uma mini ao frigorífico. Está morna. Reviro os olhos. Bebo. Está morta. Tudo é tépido. O meu estado de espírito está balofo. Preciso de anabolizantes. Para o entusiasmo.

O que é que aconteceu à minha euforia de verão? Ao meu fervor de dias compridos? À minha animação de teenager? Para onde foram as minhas emoções de adolescente? O que é feito dos tempos em que era dominada por uma excitação incontrolável ao primeiro raio de sol, a um mero anunciar de festa, em que o meu peito brandia como um vulcão só por pressentir o odor a creme protetor solar? Como se repõe aquele momento em particular em que o meu tronco vibrava como um contrabaixo com os primeiros acordes do genérico do Baywatch, em que todos os poros do meu corpo se expandiam como uma esponja sôfrega e eu me dilatava em entusiasmo e hormonas diante de um momento como este? Em que o meu pudor não protegia o suficiente contra o embaraço, e eu saltava para uma conversa como uma nadadora-salvadora a esvoaçar debaixo do sol californiano. Maldito desenvolvimento do córtex pré-frontal…

Encosto-me à parede, agachada, para repousar a coluna, para desentorpecer a energia, para despejar discretamente o resto da cerveja quente na relva. (Mais tarde, entrarei dentro da casa dos anfitriões e ficarei a saber que a parede de vidro espelhado onde me encostei, dá para a sala de estar, e que apesar de não se ver nada para o interior, se vê tudo o que se passa no exterior — e que, portanto, todos os convidados que estavam na sala foram presenteados pelo espetáculo da minha região glútea achatada como dois crepes contra a superfície da frigideira no vidro.

Uma convidada passa por mim exibindo dois seios acabadinhos de estrear, impecavelmente esféricos. Pergunto-me se não deveria ter trazido o biquíni com push-up, sinto-me um Volkswagen Carocha no meio de Porsches Panamera.

“Isso não é desonesto? Push-up no biquíni?”, pergunta a guarda-fronteiriça no ombro direito.

“É tão desonesto como as fotografias com filtro!”, responde a voz no ombro esquerdo.

Shhh!!!”, sopro para ambas, enquanto sacudo os ombros e com eles o cabelo num gesto sensual, sem querer, completamente involuntário (se tentasse ser sensual de propósito provavelmente pareceria que estava a tentar sacudir os mosquitos).

Um homem aproxima-se. Farejou o gesto. Não o conheço. Levanto-me. Tem a T-shirt vestida. Ainda bem. Sobra algum espaço para a imaginação.

“E tu? O que é que fazes?” Oh, não, essa pergunta não. Demora tempo a responder. Nem eu sei bem o que faço. É por isso que nunca poderia ser socialite. Engatilho na resposta. Ainda por cima, estou em apneia, já bebi quatro minis e meia, e sinto a barriga a inchar.

“Engenheira aeroespacial”, gracejo. Ele não se ri.

Tento descontrair. Tento encher os pulmões sem largar a barriga. Tento respirar como as professoras de ioga, com aquelas inspirações tonificadas, tento abafar o córtex pré-frontal, tento fingir que estou de gabardine, tento ser sensual, sacudo os cabelos, sacudo os ombros como a Pamela em câmara lenta, em restrição calórica, acerto no copo na mão da Porsche Panamera, ela entorna o mojito no capot: “Ai, perdão!!! Desculpe!!!” “ “Na boa! No problem!” Festa de piscina.

Solto o ar. Relaxo a barriga. Honesta na minha cintura. Sem batotas, como nas fotografias do cartão de cidadão, em que não vale pôr-me em biquinhos de pés. O homem estica-se. Fala. Contrariada, adiro ao questionário profissional, a mostrar o passaporte, a explicar a minha atividade profissional, a tentar atravessar a alfândega, o inquérito do flirt, como uma turista, com a expectativa de que do lado de lá da fronteira possa até encontrar aquela sensação da música do Baywatch, aquelas emoções sem filtros da minha adolescência. Aquele feeling.

Uma criança engasga-se. Engoliu água da piscina. Imagino-me a saltar de bóia vermelha ao ombro para a salvar. Para me salvar. O meu interlocutor despe a camisola. Compete com a criança. Continua a falar:

“Com que então escritora? Já leste Tolstoi?”

“Não. Tu já?”

“Vi o filme. É com aquela gira… a Keira Knightley!”

Tenta impressionar. Engoliu o Google. O meu telemóvel vibra. É spam.

“Desculpa. Tenho mesmo que atender. É do trabalho!”

“Pensava que eras honesta!”, dizem-me em coro as vozes sentadas nos meus ombros.

“Sou híbrida”, penso.

O cunhado salta como uma bomba para dentro da piscina. Salpica-nos a todos. A minha maquilhagem é à prova de água, mas não é à prova de momentos constrangedores. Uma pinga escorre-me na cara. A menina da lágrima.

“Ui! Estás de ressaca?”, alguém me pergunta. “Estou, claro”, digo para me fazer de cool. Sou clean. Sou chata. Nunca experimentei drogas pesadas. Tenho um estômago fraco. Morcela de arroz para mim já é pesado. Estou de ressaca e não toquei em nada.

O anfitrião está sentado num muro. Olhos postos no horizonte. Aproximo-me.

“Estás bem?”, pergunto. Ele encolhe os ombros. Provavelmente também tem dois pequenos guardas barulhentos sentados lá em cima.

“E tu?”, devolve. Encolho os ombros. Linguagem universal. Sentamo-nos ombro com ombro.

“No verão lembro-me sempre dele…”, diz-me. O pai dele… Nem preciso de perguntar. Já me contou a história. Nunca mais foi igual, o verão. Não lhe conto, mas também eu tenho um verão desses em que as coisas mudaram.

“Será por isso? Uma coisa acontece e o verão muda de estação, nunca mais é o mesmo?”

“Ou fomos nós que mudámos?”

“Lembras-te de sentir que éramos imortais?”

“Não sei se era bem isso, mas era aquela sensação de que o verão parecia infinito. E de que as tardes tinham muitas horas…” Conversámos, cuspimos perguntas e desabafos com as cascas dos tremoços. A tarde foi ficando fresca… Cobrimos os ombros e continuámos à conversa, até ser noite. Como dois mosquitos a boiar na água. Quando a festa terminou senti aquele feeling. Podia não ser exatamente o da música do Baywatch, mas já era qualquer coisa.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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