A falha no sistema da Microsoft que nas últimas horas tem afetado inúmeros serviços mostra-nos como o mundo está realmente interligado – com tudo o que isso tem de benéfico e de negativo. Um “apagão” generalizado que alcança tantos países é a prova de que a tecnologia é a atual infraestrutura marxiana à qual todos os outros elementos da superestrutura, sejam económicos, culturais, sociais ou políticos, se sujeitam.
A globalização tem-nos mostrado como o contacto entre culturas pode tanto levar à diversificação dos padrões e estilos de vida como à sua homogeneização. No caso do campo digital, este caráter uniforme é a pedra angular para que as coisas se procedam conforme o esperado. Isto significa que uma mínima variação impremeditada é capaz de causar o caos. Como o sociólogo espanhol Manuel Castells nos afirmava, hoje vivemos e atuamos sob o paradigma emergente da sociedade em rede, onde a informação é tanto a matéria-prima do conhecimento como das fake news e, também, a mediadora das conexões globais. A revolução tecnológica permite interligar tanto pessoas como espaços e instituições além das fronteiras tradicionais.
Contudo, as desigualdades que no espaço urbano ou, mais genericamente, em todo o espaço físico existem, ao nível material, são reconfiguradas para o cosmos digital. Os riscos que Ulrich Beck tanto analisou estão mais fortes do que nunca. A capacidade de afetarem, primeiro, as pessoas de classes sociais mais baixas – como se vê com os problemas da Microsoft que estão a existir neste momento em áreas como os transportes e a saúde, áreas sociais das quais o cidadão-comum depende em grande medida – mas também a infiltração nos mais ricos como uma espécie de efeito bumerangue (“Quem semeia ventos colhe tempestades”) é um aspeto francamente preocupante. E pouco têm feito as sociedades além de se colocarem sob o panóptico foucaultiano e permitirem a vigilância constante dos nossos comportamentos.
Anomalias e irregularidades como estas vêm demonstrar a fragilidade das nossas dependências. Ao estarmos nas mãos de gigantes empresas que controlam a atividade de muitas outras seremos sempre um alvo fácil. O crash da bolsa de valores de Wall Street, em 1929, foi já um ótimo exemplo daquilo que é estarmos subordinados a um único sistema de funcionamento, naquele caso o sistema de crédito. A propósito da China, na atualidade, tem-se a mesma discussão, pois a importação em larga escala de produtos aí fabricados constitui uma submissão económica que, posteriormente, tem impacto nas relações externas e nas pretensões políticas e axiológicas deste país. Estando também a tecnologia tão próxima do dinheiro e dos grandes poderes económicos, a fim de estarmos seguros, temos de diversificar os acessos que temos aos serviços, sob pena de entregarmos a nossa alma ao diabo e às suas vontades mais perversas.
No âmbito científico mais alargado, aqueles teóricos que julgavam que com o surgimento da Internet e os avanços tecnológicos pouco ou nada iria alterar-se caíram no erro de considerar tais desenvolvimentos como contendo apenas esta dimensão mais técnica – quando, na verdade, são opções sociopolíticas também. Por outro lado, os que revelaram ser mais positivamente deterministas, considerando que as possibilidades da tecnologia e a democracia em abstrato da Internet constituiriam uma revolução nos padrões de vida à altura, esqueceram-se de que a cada mudança surgem novas lógicas de poder. Em ambos os casos, as questões sociais foram predominantemente esquecidas ou negligenciadas, como se nada tivessem que ver com os novos recursos criados – o que é uma falácia e uma falta de visão a longo prazo. Se há algo para o qual a Sociologia nos alerta é para o facto de que uma postura demasiado economicista dos fenómenos humanos é meio caminho andado para o aumento do fosso entre as pessoas.
Após tanta agitação com um único sistema operativo, espero que o planeta aprenda e consiga lembrar-se das (eventuais) lições de hoje. Um mundo globalizado não tem de ser um mundo inseguro, fragilizado ou submisso às discricionariedades dos mais poderosos. Se é certo que a globalização tem falhado a quem menos tem e gerado incertezas múltiplas, também é graças a ela que conseguimos encontrar e construir as ferramentas, os saberes e as motivações necessárias para endireitar o trajeto de desigualdades percorrido até ao momento.