Após semana difícil, republicanos perguntam se aposta de Trump em J.D. Vance vale a pena

Escolha de jovem republicano é questionada em alguns sectores mais moderados do próprio partido.

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J.D. Vance no Minnesota REUTERS/Carlos Osorio
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Até ao último momento, algumas pessoas próximas de Donald Trump tentaram dissuadir o antigo chefe de Estado norte-americano de escolher o senador J.D. Vance para o cargo de vice-Presidente.

A bordo do avião de Trump a caminho de Milwaukee para a Convenção Nacional Republicana, o senador Lindsey Graham argumentou que Marco Rubio seria melhor do que Vance, mais inexperiente, alegando que Rubio poderia atrair mais votos em estados decisivos. O senador tentou ainda convencer outras pessoas no avião de Trump a defender a sua posição, de acordo com fontes próximas.

Outro assessor argumentou, numa chamada telefónica feita alguns dias antes, que o governador da Virgínia, Glenn Youngkin, ou Marco Rubio seriam uma opção melhor devido às declarações antiaborto de Vance, questionando como Trump se iria defender de algumas das posições do senador que são mais à direita do que as do ex-Presidente republicano.

Uma série de senadores, doadores, personalidades mais conservadoras da comunicação social e outros apoiantes ligaram para Trump nas 48 horas anteriores ao anúncio, fazendo lóbi para Rubio, ou alguém que não Vance, e defendendo que outros candidatos poderiam atrair mais eleitores, asseguram cinco pessoas familiarizadas com as conversas que, assim como outros entrevistados para esta notícia, falaram sob condição de anonimato.

Trump ouviu os argumentos, mas disse que o seu instinto apontava para Vance há muitas semanas, se não meses. Gostava da sua educação no chamado rust belt (em português, "cinturão de ferrugem", como é conhecida a região Centro-Oeste dos Estados Unidos), das suas posições em matéria de política externa e económica, da polémica presença mediática e do pedigree académico. Vance tinha apoiantes influentes, como Donald Trump Jr. e multimilionários do sector tecnológico.

Mais tarde, Trump admitiu que a escolha de Vance foi difícil, comparando-a ao The Apprentice, o seu antigo reality show, numa reunião com os delegados da Florida em Milwaukee. Mas afirmou também que se tratava, em parte, de garantir o futuro do Partido Republicano. "Ele vai tornar-se uma superestrela", disse Trump aos delegados da Florida reunidos no Baird Center, de acordo com um dos participantes.

Passado complica campanha

Se essa aposta — uma das mais importantes que Trump fará este ano — dará frutos, não sabemos. Nas quase duas semanas que se seguiram ao anúncio, o Presidente Joe Biden abandonou a corrida presidencial e a actual vice-Presidente, Kamala Harris, é agora a provável candidata democrata, dando novo ânimo ao partido. Vance, por sua vez, teve uma primeira semana de campanha difícil (desde que terminou a Convenção Republicana), atraindo atenção indesejada para a candidatura de Trump.

A campanha do ex-Presidente passou os últimos dias a tentar remediar os comentários polémicos de Vance, incluindo em entrevistas antigas nas quais gozava com "senhoras dos gatos sem filhos" ou adoptava uma posição sobre o aborto muito mais extremada que a de Trump.

Além disso, o New York Times divulgou e-mails trocados entre Vance e um amigo em que dizia odiar a polícia porque as forças de segurança maltratavam as pessoas e descrevia Trump como um "ser humano moralmente condenável". "Quanto mais pessoas brancas votarem em Trump, mais a população negra vai sofrer", disse.

Vance também foi atacado por amigos, incluindo o conselho editorial do conservador Wall Street Journal, o empresário Dave Portnoy e o astro da indústria mediática conservadora Ben Shapiro. Alguns questionam a avaliação feita pela equipa de Trump e perguntam se a escolha de Vance pode ter um efeito contrário ao desejado.

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Vance ao lado de Trump REUTERS/Carlos Osorio

Alguns estrategas republicanos já admitiram temer que Vance possa prejudicar a campanha eleitoral junto das mulheres a viver em zonas suburbanas — um grupo em que a popularidade de Trump caiu significativamente na derrota de 2020, após a chegada à Casa Branca em 2016. Entre os aliados de Trump, têm existido "discussões constantes sobre se o ex-Presidente fez uma má escolha", de acordo com um conselheiro de longa data, que acrescenta que as correntes de mensagens de texto dispararam com as suas "constrangedoras intervenções públicas".

Já o porta-voz da campanha de Donald Trump, Steven Cheung, defendeu o desempenho de Vance, dizendo que as críticas "não passam de considerações de indivíduos alheios que não fazem ideia do que se está a passar". "Estão tão desfasados da realidade que mais valia estarem a viver num universo diferente."

Os assessores da campanha de Trump dizem que o ex-Presidente mantém a confiança em Vance. Os dois apareceram lado a lado num evento de angariação de fundos em Mar-a-Lago, na quinta-feira à noite, e num comício no Minnesota, no sábado. Vance viajou para Oklahoma City na sexta-feira, onde foi o anfitrião numa campanha de angariação de fundos com o magnata do petróleo Harold Hamm, que terá arrecadado mais de dois milhões de dólares (cerca de 1,7 milhões de euros). É expectável que a sua agenda se mantenha ocupada — tanto para visitas aos estados do rust belt, como para​ angariar fundos. A equipa de campanha também ficou satisfeita com os ataques incisivos de Vance contra Kamala Harris nos seus últimos discursos.

"Colonoscopia política"

"Trump está entusiasmado com a escolha que fez, são a equipa perfeita para reconquistar a Casa Branca", afirma Steven Cheung. "Entretanto, os democratas estão numa desordem total desde o golpe que obrigou Biden a afastar-se da campanha e que provou que eles são a verdadeira ameaça à democracia."

Segundo os seus assessores, Trump estava ciente das críticas que Vance lhe tinha dirigido no passado. A equipa do candidato presidencial teria conhecimento de algumas, mas não de todas as suas declarações passadas que têm chamado mais a atenção — e contam que mais sejam reveladas.

Obviamente, foi realizada uma avaliação completa e exaustiva e não existiam dúvidas de que o senador Vance era absolutamente qualificado para ser o próximo vice-Presidente dos Estados Unidos. Na política, as pessoas geralmente encolhem-se de medo e enrolam-se numa bola quando as coisas ficam difíceis. Mas não o senador Vance, e certamente não o ex-Presidente Trump", disse Cheung.

Kevin Madden, porta-voz das campanhas presidenciais de Mitt Romney, disse que a campanha de Trump-Vance parece ter sido "apanhada de surpresa com comentários anteriores".

"Numa campanha presidencial, é feita uma colonoscopia política todos os dias", disse Madden. "Mas, neste caso, estamos a falar de um homem de 39 anos que está a um terço do seu mandato no Senado e é por isso que estamos a assistir a um início um pouco turbulento."

O início particularmente difícil de Vance foi uma boa surpresa para a campanha de Kamala Harris, de acordo com um assessor de Harris, que falou sob condição de anonimato. Embora já esperassem que Vance enfrentasse alguns problemas por causa das anteriores críticas a Trump, a equipa democrata não contava com algumas das polémicas mais duras da Internet.

"Não esperávamos ciclos de notícias sobre 'senhoras dos gatos'", disse o assessor. "Isso está a acontecer organicamente, sem que tenhamos de fazer qualquer pressão... Nunca vi nada assim. É muito estranho."

A campanha de Harris tentou destacar outras das suas anteriores declarações, como as posições de Vance sobre o aborto — uma questão que Trump procura evitar e que as sondagens mostram ser uma vulnerabilidade para os republicanos junto do eleitorado em geral. Pessoas próximas à campanha de Harris dizem que a escolha de Vance facilita a argumentação.

KamalaHQ, a conta da rede social X de resposta rápida da campanha de Harris, tem feito sucessivas publicações de conteúdo antigo de Vance. Num vídeo de uma palestra dada em 2021, Vance diz que os divórcios, mesmo em casos de violência doméstica, talvez "tenham sido positivos para as mães e os pais, embora eu seja céptico". "Mas realmente não funcionou para os filhos desses casamentos."

Em 2022, em declarações para um podcast, Vance defende uma "resposta federal" para impôr restrições às mulheres que atravessam fronteiras entre estados para realizar interrupções voluntárias da gravidez. E, num vídeo de 2016, diz que Trump é "um candidato muito mau". "Francamente, acho que ele é uma pessoa muito má."

Em sua defesa, Vance alegou que essas intervenções foram retiradas de contexto e que a sua opinião sobre Trump evoluiu desde que o viu em acção como Presidente.

Vance foi também alvo de críticas por ter dito na Fox News, em 2021, que mulheres na política sem filhos, como Harris, são "senhoras dos gatos infelizes com as suas próprias vidas". Não têm "nenhuma participação directa" no futuro dos Estados Unidos, acrescentou.

No programa televisivo apresentado por Megyn Kelly, tentou esclarecer essas palavras. "Não tenho nada contra gatos. Não tenho nada contra cães. Tenho um cão em casa e adoro-o", começou por dizer. "As pessoas estão a concentrar-se demasiado no sarcasmo e não na substância do que eu, de facto, disse, e a substância do que eu disse, Megyn — desculpe, é a verdade. É verdade que nos tornámos anti família. É verdade que a esquerda se tornou anti crianças."

O porta-voz de Vance, William Martin, considerou que os ataques dos democratas "não eram surpresa" e disse que Vance estava a planear dar mais importância ao historial da Administração Biden em relação à inflação e à imigração. "Essas são as questões com as quais os eleitores realmente se preocupam, por mais que os media de esquerda desejem o contrário."

Vance foi pressionado por Trump Jr., o filho mais velho do ex-Presidente, e por uma série de pessoas influentes, incluindo multimilionários do sector da tecnologia, como Elon Musk, e personalidades dos media, como Tucker Carlson.

Um dos objectivos de Trump ao fazer esta escolha era ter um candidato com raízes no midwest que pudesse "acampar" em estados como a Pensilvânia e conversar com esses eleitores, uma vez que está a sua popularidade está em baixo entre os homens brancos e J. D. Vance poderia ajudar a fortalecer essa base, dizem os assessores.

Outro objectivo era tirar partido da importante base de financiadores de Vance, inclusive em Silicon Valley.

"O livro de J.D. está em primeiro lugar na Amazon neste momento. As pessoas estão a pagar-lhe para ler a sua história de vida. A campanha de Harris terá de pagar aos canais televisivos e às redes sociais para contar a história da vida dela", disse Justin Sayfie, lobista da Florida que angariou fundos para Trump.

David Urban, aliado de longa data de Trump na Pensilvânia, admitiu acreditar que a história de Vance iria ter impacto junto do operariado: "Se ele perguntar às pessoas numa assembleia municipal, ou num comício: quantos foram afectados pelas drogas e pelo álcool? Quantos já tiveram dois ou três empregos e sentem que não conseguem progredir? Quantos se alistaram nas forças armadas?"

Até agora, Vance tem recebido boas-vindas calorosas, embora muito menores do que as de Trump.

Um dos primeiros obstáculos na campanha surgiu logo no comício de Vance na sua cidade natal, Middletown, Ohio, na segunda-feira. O auditório da escola de ensino básico que frequentou encheu-se com algumas centenas de pessoas, incluindo quem o conhecia desde a infância — entre elas, a sua mãe e um professor de matemática que lhe era querido — que entoavam as iniciais "JD!"

Quando um membro da audiência questionou Vance sobre a exigência de identificação para votar, o candidato, novato no palco nacional, distraiu-se. A discussão que se seguiu tornou-se o momento mais visto de todo o evento.

Greg Hieser, de 68 anos, assistiu ao evento e disse que ainda acreditava que Trump e Vance sairiam vencedores destas eleições, mesmo tendo dúvidas sobre o estilo de discurso de Vance. "Ele ainda está verde ", disse Hieser, "mas vai apanhar-lhe o jeito".


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Notícia corrigida às 15h59 com correcção de algumas imprecisões de tradução.​

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