Interessamo-nos demasiado pelo sexo dos outros

Imane já foi derrotada no passado, várias vezes, mas saiu vencedora dos Jogos Olímpicos, com a medalha ao peito, gritando: “Sou uma mulher!”

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A pugilista Imane Khelif conquistou o ouro nos Jogos Olímpicos de Paris Peter Cziborra/Reuters
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Lembro-me de, ainda no tempo da escola, algumas colegas terem um aspeto mais masculino, de passarem a vida a jogar à bola, de serem questionadas a todo o momento, por que motivo nunca usavam saia. Desde cedo, percebemos a diferença à mesma velocidade com que somos cruéis. Falo no plural, porque numa ou noutra área, todos temos os nossos pré-conceitos e só a maturidade e o estudo, científico, sobretudo e quiçá, poderá abrir horizontes.

Muito se tem comentado acerca da legitimidade da vitória da campeã olímpica argelina, Imane Khelif, de feições másculas, nada feminina (seja lá o que cada um interpretar como exclusivamente feminino). Não é caso único, e multiplicam-se as polémicas semelhantes nestes e noutros jogos. Toda esta controvérsia era facilmente desconstruída se Imane obedecesse aos padrões femininos atuais de beleza. Umas extensões de cabelo, alguns procedimentos estéticos e uma boa make up, não levantariam qualquer dúvida de que se trataria de uma mulher, que nasceu com a genitália feminina e se identifica como mulher.

Mas, o humano, não satisfeito, quer que esta mulher que parece um homem, se comporte como uma mulher, que seja frágil, sexy e sobretudo feminina. Tem de ser ou irá arder nas fogueiras atuais, onde as mulheres são queimadas vivas: nas redes sociais. Foi por isso com tristeza, que por estes dias, escutei Rachid Jabeur, tio da atleta, numa entrevista à BBC News Arabic, lamentando toda a polémica em torno da sobrinha e reiterando que sim, sempre foi uma menina, que “desde pequenina adorava desporto e era muito corajosa, muito feminina e que o mais importante da vida dela é praticar desporto”, concluindo que a “família nunca teve dúvidas de que era uma mulher”.

O Comité Olímpico Internacional (COI) e a Federação Internacional de Boxe (IBA), que desde 2020 é liderada pelo empresário russo Umar Kremlev, manifestaram opiniões divergentes e tanto Imane Khelif como a taiwanesa Lin Yu-ting foram excluídas do mundial da modalidade, após reprovação num teste de determinação de género. Entretanto, várias atletas já se pronunciaram em defesa destas mulheres.

Aliás, a irlandesa Amy Broadhurst, que venceu Imane em 2022, afirmou no Instagram: “O IBA divulgou a informação de que duas pugilistas falharam num teste de género há mais de um ano, mas onde estão os resultados? Os resultados ainda não foram publicados, por isso as pessoas estão apenas a acreditar no que foi dito. Lembrem-se que a IBA foi proibida de ter qualquer coisa a ver com os Jogos Olímpicos. O abuso que esta pessoa recebeu nas últimas 24 horas sem quaisquer factos reais ou provas, é muito errado.” E o Comité Olímpico Internacional (COI) lembrou que “as mulheres podem ter um nível de testosterona igual ao dos homens, embora ainda sejam mulheres”.

Todavia, não faltaram políticos, mesmo em Portugal, a aproveitarem-se desta polémica, apressando-se a crucificar a atleta. Não estão importados nem tão pouco informados, apenas se colam à verborreia de taberna, tão agressiva quão feroz: expulsem essa mulher! Que irritação tamanha causa Imane e outras mulheres e homens, cujo género ou orientação levanta dúvidas? Como se interessam tanto pelo sexo dos outros, de forma tão violenta, exigindo justiça, e como são tão lentos a reagir perante a guerra, a fome ou a tortura?

Imane já foi derrotada no passado, várias vezes, mas saiu vencedora dos Jogos Olímpicos, com a medalha ao peito, gritando: “Sou uma mulher!” Em Paris, deu-se a conhecer ao mundo e a sua história terá outras páginas escritas. Imane Khelif apresentou uma queixa por cyberbullying agravado ao Ministério Público de Paris e espera agora que o mundo dos humanos faça justiça.

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