Público Brasil Histórias e notícias para a comunidade brasileira que vive ou quer viver em Portugal.
Karim Aïnouz: “Movimentos migratórios são enriquecedores, devem ser festejados”
Para cineasta brasileiro, países europeus devem comemorar pela chegada de imigrantes, que merecem ser tratados melhor. Eles oxigenam a cultura e a vida do continente, que está envelhecendo.
Os artigos escritos pela equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
Acesso gratuito: descarregue a aplicação PÚBLICO Brasil em Android ou iOS.
O fluxo de brasileiros e de cidadãos de outras partes do mundo para Portugal e demais países da Europa deve ser comemorado por todos e não rechaçado por parte da população local. Para o cineasta cearense Karim Aïnouz, cujo mais recente filme, Motel Destino, tem estreia mundial nesta quinta-feira, 22 de agosto, é muito importante colocar que a imigração não é um ato de conquista, nem um ato de tomada de uma cultura, mas um ato necessário para algumas pessoas, que não saem de casa porque querem.
"Os imigrantes trazem vida nova, principalmente, para o continente europeu, que está se aposentando, assim, tecnicamente falando. Isso é motivo de riqueza grande. Temos que falar disso. Os imigrantes não estão vindo para a Europa para roubar nada de ninguém" afirma. E acrescenta: "Devemos pensar nos processos migratórios como uma troca. Eu detesto a palavra integração. Acredito que não tem integração, tem inteiração. Estamos aqui porque o Brasil foi invadido pelos portugueses. É importante virar a página e tentar entender que esses movimentos migratórios são enriquecedores".
Ao PÚBLICO BRASIL, Aïnouz diz que vê, com muita satisfação, o novo momento político no Brasil, "depois de seis anos de terror". Na avaliação dele, a volta das políticas sociais e de incentivo à cultura é um sopro de renovação para o país e para a população, e isso se reflete no bom momento vivido pelo cinema brasileiro.
Em Portugal, Motel Destino estará em exibição em mais de 10 salas e, no Brasil, em cerca de 100. No festival de cinema de Cannes, em maio último, foi aplaudido de pé durante 12 minutos. Aïnouz diz que o filme deveria ter sido realizado antes da pandemia de covid-19, mas teve o edital do Fundo Setorial da Agência Nacional do Cinema (Ancine), no Brasil, cancelado, mesmo depois de assinado, resultado do desmonte cultural que o país sofreu após o impeachment da presidente Dilma Rousseff.
O projeto, que ficou na prateleira, como se refere, foi retomado, e o cineasta se diz muito satisfeito por poder filmá-lo em seu estado natal, o Ceará. Ele já pensa em desdobramentos a partir dessa película.
Durante o processo de edição de Motel Destino, surgiu a ideia de fazer duas sequências, explorando o potencial de outros personagens que acabaram não recebendo muito destaque. Aïnouz ressalta que está a todo vapor e trabalhando em um projeto na Espanha, que ainda não pode revelar detalhes.
Também está preparando uma adaptação de O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, para uma versão em língua inglesa, provavelmente para ser realizado nos Estados Unidos. Aïnouz reside há 15 anos em Berlim, na Alemanha, mas está sempre presente no Brasil.
Como vê o debate sobre imigração em Portugal e na Europa como um todo?
Creio que ninguém sai de casa porque quer sair de casa. A gente sai de casa porque tem que sair. É muito importante colocarmos que a imigração não é um ato de conquista, nem um ato de tomada de uma cultura, mas um ato necessário para algumas pessoas. Os imigrantes trazem vida nova, principalmente, para o continente europeu, que está se aposentando, assim, tecnicamente falando. Isso é motivo de riqueza grande. Temos que falar disso. Os imigrantes não estão vindo para a Europa para roubar nada de ninguém. Devemos pensar nos processos imigratórios como uma troca. Eu detesto a palavra integração. Acredito que não tem integração, tem inteiração. Estamos aqui porque o Brasil foi invadido pelos portugueses. É importante virar a página e tentar entender que esses movimentos migratórios são enriquecedores, devem ser festejados.
Em relação ao governo anterior e o atual no Brasil, como vê o momento cultural?
O governo passado foi um terror. Era fascismo, uma direita patológica. Foi muito importante fazer Motel Destino, porque era um filme para ter sido feito antes do golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff. Assinamos o contrato a partir de um edital que ganhamos do Fundo Setorial da Ancine. Houve o golpe, e tudo foi suspenso. Então o projeto foi para a prateleira, sem nenhuma perspectiva de que o filme pudesse de fato vir a existir. Tinha desistido dele completamente. Com a volta da vida, porque acho que o Brasil estava na UTI, e Motel Destino vem como um testemunho disso, pois foi feito dentro de um espaço de muita liberdade. Por isso, quis fazer o filme no mar. Vivemos uma espécie de trevas durante seis anos. O filme, de fato, vem como uma pitada de esperança, é muito exuberante, caloroso, vivo. Vai além da história dele, do tema, dos personagens. É também é um documento de um momento de retomada da vida no Brasil.
Inclusive, com o uso de cores quentes.
No filme todo. Não foram escolhas feitas explicitamente, mas, inconscientemente, foi assim. Motel Destino recupera uma certa febre, uma certa vibração de vida em todos os sentidos, nas cores, no sexo, no tesão, nos personagens, no jeito que eles interpretam. Isso, exatamente, no ano das eleições no Brasil (2022) e no primeiro ano do governo novo. Foi engraçado como isso contaminou o filme de alguma maneira.
Está realizado com o resultado final de Motel Destino?
Eu estou muito feliz de poder ter feito o filme, de poder lançá-lo, pois tem uma veia popular que me interessa muito. Foi feito explicitamente com esse desejo de trazer o público para a sala de cinema. Para ter uma experiência intensa. É um filme de suspense, vital. Eu estou muito feliz que o filme esteja sendo lançado com tantas cópias no Brasil e em Portugal. Existe uma aposta grande, que é importante no momento, de ocupação das salas de cinema com filmes brasileiros. Isso é muito bom.
Virá uma trilogia a partir de Motel Destino?
Na verdade, isso é uma ideia muito recente. Foi tão bom fazer esse filme, um prazer tão grande voltar a filmar no Ceará, com tanta liberdade. Creio que é uma ideia muito recente, que veio por uma necessidade de continuar fazendo isso. O filme tem muitas histórias que podem continuar, personagens que não são protagonizados e podem continuar, como a Bambina, o Rafael, o Moco. Queria dar mais vida para eles. Então, tive a ideia de fazer uma trilogia que, na verdade, seria um segundo filme, uma espécie de faroeste, e o terceiro, um filme de fuga. Quem sabe. São três gêneros diferentes, mas que dão uma continuidade. Motel Destino é um projeto maior.
Esses desdobramentos de Motel Destino estão ligados com a escola de cinema no Ceará?
É um filme de uma geração de pessoas que foram minhas alunas no Porto Iracema das Artes, uma escola que montamos em Fortaleza. Fomos tendo essa ideia no decorrer do ano, enquanto estávamos montando o filme, de continuar esse projeto com mais dois filmes, uma conversa com Motel Destino e com os personagens, com os mesmos atores.
A indústria do audiovisual muda a vida das pessoas?
Pode mudar a vida de muita gente atrás das telas e na frente das telas. Acredito que também é um espelho da gente. Ter uma casa sem cinema é uma casa sem espelho. É muito importante uma indústria de audiovisual que seja fruto de um processo de investimento na formação. Hoje em dia, Fortaleza é uma cidade que tem cinco escolas de cinema e, quando comecei a pensar em seguir nessa carreira, havia só uma escola, muito pequena. Na verdade, era uma extensão do curso de comunicação.
E Motel Destino nesse contexto?
Esse filme não vem como um acidente, é fruto de um processo. E outra coisa que é bacana falarmos: neste mês, cinco filmes cearenses em cartaz nas salas de cinema do Brasil. É muito importante como ele desemboca a partir de um processo de formação que vem acontecendo há muito tempo no Ceará. Fruto de políticas públicas, o que é muito importante. O audiovisual é um espaço muito potente de transformação social, e ajuda a enxergar o mundo de outras formas, diferentes da realidade que está ali.
Como vê o mercado de streaming?
É muito diverso. Até pouco tempo atrás, era um mercado só de longa-metragem ou de teledramaturgia. Hoje em dia, abre-se para várias outras possibilidades, como séries e filmes que passam nas plataformas. É um momento interessante também para reconquistarmos o cinema enquanto espaço de troca. A sala de cinema é um espaço de encontro. Vivemos hoje muito mais possibilidades para contar histórias do que a gente jamais teve. É muito importante pegarmos esse momento e torná-lo fértil a nosso favor.
É muito bom ver a região Nordeste nas telas? As dunas, a areia, a luz? Sente esse retorno do público?
Demais, e dá uma sensação de empoderamento. Tem outra coisa que é muito importante: passamos a vida sendo tratados como cidadãos de segunda categoria. O Nordeste sempre foi um lugar meio longe, de onde as pessoas emigravam para São Paulo. Hoje em dia, está virando um lugar de imigração, onde começamos a ter orgulho do que somos. O tempo inteiro, nas novelas, era absolutamente caricata a maneira como se falava do Nordeste, era absolutamente desumanizante.
Mas o cinema nordestino vai além do Ceará?
Estamos fazendo cinema no Ceará, em Pernambuco e em outros estados. Espero que tenhamos mais produção também na região Norte. Ainda há pouco. É muito importante a recuperação de um lugar que sempre foi tratado como periférico. Tem uma mitologia muito grande na região que sempre foi meio apropriada por filmes feitos por pessoas do Sudeste. Isso mudou. Estamos contando histórias que já existiam. Estamos jogando luz nessas histórias.
Quais são seus futuros projetos?
Estou com um monte de coisa no forno. Tem o projeto da trilogia de Motel Destino, tem um que estou filmando agora na Espanha, do qual não posso falar muito. Mas estou a todo vapor. Isso tem a ver com o momento de vida e com condições muito férteis que estamos vivendo no Brasil, com a retomada da vida, do audiovisual, dos projetos não só culturais, mas sociais e políticos. Estou um pouco nessa toada.
Também está trabalhando em uma adaptação de O Beijo no Asfalto, do Nelson Rodrigues?
Não posso dar detalhes, mas vai ter e vai se passar, provavelmente, nos Estados Unidos. É uma adaptação em língua inglesa da história do Nelson num outro contexto.
E os novos cineastas?
Está vindo uma geração muito mais diversa, tanto em relação à orientação sexual, quanto à etnia e ao contexto de onde essas pessoas estão vindo. Estamos prestes a presenciar uma mudança grande no audiovisual, porque não só é importante que tenhamos um país mais diverso na frente das telas, mas também atrás das telas, das câmeras.