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O garoto que queria ser monge solta a voz em árias barrocas e modinhas
Nascido em Garanhuns, no agreste de Pernambuco, o contratenor é muito requisitado na Europa. Ele mantém, com o marido, também cantor lírico, um centro cultural em Alcobaça.
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O menino João Paulo Ferreira adorava brincar nas ruas de sua cidade natal, Garanhuns, no agreste Pernambucano. Nos arredores, descalço, sonhava em ser monge e criava uma grande conexão com os campos e riachos. Era um conforto espiritual, que se materializava por meio de músicas religiosas. Aos 11 anos de idade, foi tocado fortemente pelo canto gregoriano, paixão que o levou, mais tarde, a descobrir a aptidão pela música clássica.
“Na pré-adolescência, ouvia muito Madredeus, Enya e Loreena McKennitt. Gostava muito desse universo meio místico. Daí o pensamento de me tornar um monge e cantar em igrejas muito antigas”, lembra o hoje contratenor de 37 anos, bastante requisitado atualmente na Europa. “Realmente, não era comum meninos da minha idade ouvir aquele tipo de música, mas era o que eu gostava”, acrescenta.
O tempo foi passando e ampliando o leque musical com o que João Paulo se refestelava. Entraram no rol as modinhas brasileiras, muito comuns no início do século passado. Mas, claro, sem abrir mão do Madredeus, grupo português que, na época, tinha como vocalista Teresa Salgueiro. “Gostava de imitá-la”, conta o artista. Aí reside a raridade da voz de João Paulo, que tem a capacidade de alcançar notas de contralto e de barítono.
Foi esse grande apuro musical, associado às múltiplas vozes saindo de uma única garganta — o que só se consegue com muito estudo —, que convenceu o tio de João Paulo, Osvaldo Ferreira, maestro do coro da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Garanhuns, a chamar o sobrinho para integrar o grupo que encantava nas missas de domingo.
Aos 15 anos, com a voz em processo de amadurecimento, o jovem se descobriu contratenor. Ciente de que precisava aprimorar sua técnica e usar melhor o dom de cantar, João Paulo começou a pesquisar sobre cantores líricos no computador da biblioteca de Garanhuns. Na primeira consulta, apareceu o cantor português Luís Peças. “Fiquei maravilhado. Quando ouvi o Luís, pensei: quero cantar assim”, relembra. Essa pesquisa mudaria a vida dele.
Carreira internacional
Não demorou muito para que João Paulo trocasse a pequena cidade em que nasceu pela capital Recife, onde foi trabalhar com teatro e música na Cênicas Companhia de Repertório. Dali, mudou-se para Aracaju, capital de Sergipe. “Durante alguns anos, participei de um coral ligado à Orquestra Sinfônica de Sergipe, sendo contralto do grupo”, conta. Para o início da carreira internacional, foi um pulo.
“Com 22 anos, estava vivendo no Panamá, tendo minha primeira experiência com música fora do Brasil. Fiquei quase um ano por lá. Depois, fui para o México e a Costa Rica por meio do grupo Nido de Las Artes”, ressalta João Paulo. Um dia, entre as apresentações, encontra no computador uma mensagem que o fez recuar sete anos. O cantor português Luís Peças, com o qual que ele havia se maravilhado na pesquisa feita na biblioteca em Garanhuns, havia pedido para segui-lo nas redes sociais. “Fiquei muito emocionado”, diz.
Empolgado, João Paulo escreveu uma longa mensagem para Peças. Falou sobre o que estava fazendo, da trajetória profissional, de como o admirava. Passaram-se dias, semanas, meses sem que o cantor português desse qualquer retorno. “A resposta veio depois de um ano. Travamos um contato mais efetivo e, conversa vai, conversa vem, ele me convidou para fazer um concerto em Portugal, na Igreja de Nossa Senhora da Nazaré”, assinala. Os dois se casaram e nunca mais se separaram. O pernambucano estava analisando uma proposta para cantar em Nova York, mas optou por fincar raízes em terras lusitanas, onde se casou com Peças.
Há 11 anos, o casal mora em Alcobaça. Lá, João Paulo canta uma vez por semana, quando não está cumprindo sua agenda de concertos. Ele também tem sido presença constante em programas de televisão especializados em revelar novos talentos na música. Em Portugal, numa das edições do Got Talent, foi eleito vencedor pelo público e ficou em quarto lugar na final geral, a mesma colocação obtida na Espanha. “No ano passado, fiz uma participação especial em Portugal e na Espanha como convidado. Foi uma experiência muito bonita”, afirma.
João Paulo lançou vários discos. O mais recente se chama Ave do Paraíso. “Trata-se de um trabalho no qual pude reunir um pouco da minha essência musical e as experiências mais importantes do universo onírico entre amores, paixões, que é um processo natural no universo do artista”, define. Ele não esconde o desejo de se apresentar mais no Brasil.
Xenofobia em alta
Como contratenor, João Paulo tem forte identificação com o repertório da música barroca. “Sou um contratenor premium. Minha voz falada, obviamente, é de um barítono. Estou fixo dentro do barroco, mas aberto a outras possibilidades musicais. Adoro fazer modinhas brasileiras, pois tenho uma admiração imensa pelos compositores do início do século 20”, afirma. “Inclusive, vejo muitas semelhanças entre essas modinhas e o fado.”
O pernambucano canta em barroco italiano, em aramaico, mesmo não falando essas línguas, e em judeu sefardita. “Aliás, sou de família sefardita, que emigrou de Portugal para o Recife”, ressalta. Essa remissão faz com que João Paulo toque em um tema que o incomoda muito, a xenofobia. “Quando cheguei em Portugal, há 11 anos, não se via tantos casos, mas, infelizmente, nos tempos atuais, a intolerância está mais presente”, enfatiza.
“Eu acredito que essa xenofobia foi crescendo aos poucos. Mas os portugueses estão sempre ouvindo o sotaque do Brasil, adoram as novelas brasileiras, as nossas músicas. Isso não combina com o que temos visto”, frisa João Paulo. Para ele, talvez diante do fluxo recente maior de brasileiros para Portugal, alguns portugueses estejam se sentindo mais acuados, temendo ver a cultura local sendo ameaçada pela migração.
Preocupações à parte, João Paulo e o marido, Luís Peças, dedicam atenção redobrada a um espaço cultural batizado de Ópera Café, no Arco do Cister, nas proximidades do mosteiro de Alcobaça. O Arco do Cister é a primeira obra plenamente gótica erguida em solo lusitano, e foi iniciada em 1178 por monges da Ordem de Cister.
O prédio está classificado como monumento português desde 1910 e como Patrimônio da Humanidade pela Unesco desde 1989. As paredes tão antigas tremem quando o menino que queria ser monge brinda os visitantes com um repertório de árias, modinhas e outros gêneros musicais. “Eu adoro esse lugar. Estou encantado por Portugal”, diz.