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Videocast: Karla da Silva. "O samba, com todos os seus sotaques, une e cura"
A cantora e compositora só reencontrou o samba quando desembarcou em Portugal. Ressalta a importância de parcerias com outros artistas brasileiros, como Cícero Mateus.
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A menina de Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro, praticamente nasceu ouvindo música. "Nasci e cresci numa casa com todas as dificuldades que a gente transformou em arte, poesia e muito afeto", diz a cantora Karla da Silva, que, há cinco anos, escolheu Portugal para fincar raízes.
"Venho de uma família de muitas mulheres, todas cantoras. Só uma delas era profissional, mas todo mundo cantava na minha casa. Meus primos, minhas tias, todo mundo. Lá em casa era proibido desafinar, era proibido cantar errado, a gente tinha que aprender a cantar direitinho”, conta a artista.
O samba, como estava predestinado, era o ritmo que embalava aquela cantoria. Não sem razão. Madureira é berço de três das mais tradicionais escolas de samba do Rio: Portela, Império Serrano e Tradição. Do quintal da casa de Karla, era possível ouvir o som das baterias, que se misturavam às rodas de samba e de choro promovidas pela família dela.
Karla diz que, desde que entrou para a música profissionalmente, sempre procurou estar bem acompanhada. E um de seus principais parceiros em Portugal tem sido o paulista Cícero Mateus, que vive em terras lusitanas há 23 anos. Os tios dele já haviam emigrado para o país, quando ele e os irmãos cruzaram o Atlântico a fim de terem uma educação melhor.
Apoio a iniciantes
Cantor, compositor e instrumentista reconhecido, Cícero é sócio do projeto Viva o Samba Lisboa. Em suas apresentações, já contou tanto com artistas consagrados quanto com iniciantes. O grupo, com 12 integrantes, sabe a importância de estender as mãos para quem está chegando em um país que não é o seu de origem.
É ao som do tamborim, da cuíca e do pandeiro que muitos músicos trocam experiências e criam composições. Mas também os momentos intimistas servem para deixar a criatividade aflorar. Karla recorda que uma vez, caminhando de uma estação de trem para casa, surgiu uma canção em sua cabeça.
“Quando cheguei em casa e a minha mãe abriu a porta, contei que fiz uma música no caminho e queria que ela ouvisse", lembra a cantora. A canção, com o título de Negra, está num de seus discos. "Em outra ocasião, estava em um show com Pierre Aderne (cantor e compositor) e ele me mostrou uma letra. Eu tinha sonhado com uma melodia. Peguei aquela melodia, encaixei na letra dele e a gente gravou a música”, relata.
Karla fala da primeira canção que compôs em Portugal. Em 2019, ela largou uma carreira consolidada no Brasil e recomeçou do zero no país europeu. Uma noite, cantando em um bar na cidade do Porto, observou a efeito da música sobre as pessoas, a emoção que sentiam. "Pensando nisso, compus O Samba Cura. Na hora que a música saiu, me deu muita vontade de chorar, porque tinha entendido qual era o caminho. Eu precisei ter um afastamento do Brasil para entender a importância do samba", recorda.
Tamanha emoção tem explicação. Mesmo tendo a sua origem no samba, Karla optou uma carreira mais eclética, aberta a todos os sons. “Minha geração bebeu de muitas fontes. Nasci nos anos de 1980. Depois, veio a década das músicas americana, o rock. Quando nasci para o canto e decidi fazer dele uma profissão, tinha muitas influências, muita coisa de que eu gostava. Sou muito fã de jazz e de música instrumental. Foi preciso desembarcar em Portugal, no entanto, para que o samba, efetivamente, entrasse de vez no repertório dela. "O samba era como aquele pai, que só estava esperando a rebeldia da adolescência passar”, diz.
Para Karla, as escolas de samba são parte fundamental de sua vida. Os pais, mesmo morando em Madureira, foram diretores de harmonia da Caprichosos de Pilares. “A Portela nasceu na rua em que eu vivi minha vida toda, mas sou Império Serrano. A escola de samba para um jovem do subúrbio é o centro cultural. É onde nós vemos as pessoas comuns da sociedade se transformarem em grandes artistas”, afirma.
Cícero completa: "As quadras das escolas de samba, se tivessem mais atenção da sociedade, seriam lugares com muito mais projeção do que já têm. Se tivesse mais foco ali, seria possível encontrar muito mais artistas de grande qualidade. É isso o que o Brasil está precisando”.
Sotak em setembro
Em setembro, Karla lançará seu novo trabalho, com o título Sotak. Ela explica que a obra é, principalmente, feita de samba. Samba de roda, samba de terreiro, samba de quadra, samba de partido alto, samba canção. Ela também buscou, para esse disco, ritmos irmãos, como a morna, de Cabo Verde, o semba angolano e o jongo, do sudeste do Brasil.
“Trato o samba como essa língua que possui diversos sotaques. Meu objetivo é mostrar, na Europa, algo que vai além das plumas e paetês. Porque, quando a gente fala sobre samba, muitas vezes, as pessoas têm um enquadramento do ritmo, e esse ritmo pode ser muita coisa", detalha. "Aproveito essa história dos sotaques para trazer uma reflexão sobre a língua portuguesa, o português do Brasil, o português de Portugal. Isso porque, quando cheguei em Portugal, descobri que não falava português, falava brasileiro”, acrescenta.
Karla percebeu que, muitas vezes, a questão da língua divide as pessoas. Contudo, ela acredita que o samba é um fator de união. “O samba tem muitos sotaques, que não dividem as pessoas. Eles as aproximam. Então, faço, por meio das músicas, uma reflexão sobre os nossos diversos sotaques, sobre as nossas línguas, e um pedido para que, assim como no samba, o sotaque possa unir mais”, afirma.
Adepta do candomblé, Karla tem levado essa cultura de matriz africana mundo afora. Recentemente, proferiu uma masterclass em Arles, na França, com o intuito de explicar essa tradição para pessoas que não conhecem essa ancestralidade. A artista assinala que, quando cantamos, rezamos. "Aprendi a cantar ouvindo a minha mãe rezar, ouvindo a minha avó rezar", conta.
Mas, de início, ela teve medo sobre como falar de orixás para as pessoas que não os conheciam. "Só que descobri que as pessoas sentem e, no curso, foram simplesmente entrando com tudo no que foi apresentado. Há magia e mistério da música. Foi fantástico”, diz. Para o futuro, a menina de Madureira prevê um disco fundindo o samba com o jazz. "Sempre desejei fazer um trabalho nessa linha. E está chegando a hora", diz.