Chamaram-lhe “monstro”, mas afinal seria outro

A morte de um menino de três anos escandalizou a sociedade de Lima nos anos 1950. Um homem foi considerado culpado e executado, mas as dúvidas persistem: terá sido mesmo ele?

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José Carlos Alves
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“Mistérios por Arquivar”é uma série de textos sobre crimes nunca resolvidos do P2 de Verão 2024. Porque os casos até podem estar arquivados, mas o mistério não prescreve.


Chamava-se Jorge Villanueva Torres, mas o seu verdadeiro nome ainda hoje dirá pouco à maioria dos peruanos, mais habituados a ouvirem falar dele como o “monstro de Armendáriz”, cognome infame com que passou à história. Quase 70 anos depois de ser fuzilado por um crime que sempre disse não ter cometido, há muito quem pense que talvez estivesse a dizer a verdade e que o monstro, afinal, era outro.

Na noite de 7 de Setembro de 1954, um rapaz de três anos chamado Julio Hidalgo Zavala desapareceu da vista dos pais. O seu corpo já sem vida seria encontrado alguns dias depois por estudantes em Armendáriz, um enorme vale que divide dois bairros de Lima: Miraflores e Barranco. O cadáver do menino apresentava sinais de morte violenta. A teoria da polícia, baseada na autópsia, foi a de que Julio tinha sido raptado, golpeado na cabeça, vítima de abuso sexual e estrangulado, vindo a morrer por asfixia.

O caso escandalizou a sociedade limenha e a imprensa dedicou-lhe uma extensa cobertura, relatando que os pais não queriam deixar os filhos sair à rua desacompanhados, que a polícia vasculhou tudo quanto era tabernas e pardieiros em busca de um culpado e que a cidade assistiu por diversas vezes a manifestações em que se exigia justiça para o menino.

Eram os anos finais da ditadura militar de Manuel Odría (1948 a 1956), que Mario Vargas Llosa retratou no monumental Conversa n’A Catedral. A esta distância, juristas, jornalistas e dramaturgos que posteriormente se debruçaram sobre o caso dizem que a forma como os acontecimentos se desenrolaram não se pode dissociar do classismo, do racismo e da corrupção que então dominavam as altas esferas do Peru, apostadas em encontrar rapidamente um responsável e em desviar atenções da decadência política e económica em que o país vivia.

A dada altura, um vendedor ambulante de torrões disse à polícia que “um indivíduo negro e alto” lhe tinha comprado doces “para o menino”. Ulderico Salazar garantiu que conseguia reconhecer o tal homem e, perante as fotografias que a polícia lhe pôs à frente, identificou imediatamente Jorge Villanueva Torres.

Então com 35 anos e a alcunha de “Negro Torpedo”, Villanueva não era desconhecido das autoridades, uma vez que realizava pequenos furtos em Miraflores e Barranco. O testemunho de Salazar e o facto de o pequeno Julio ter sido encontrado perto da barraca em que Villanueva vivia, em Armendáriz, fizeram com que fosse acusado formalmente.

Foi então que a imprensa lhe deu o apodo pelo qual ainda hoje é conhecido. O “monstro de Armendáriz” negou sempre ter cometido aquele crime e exaltou-se em tribunal mais do que uma vez, clamando inocência. Uma fotografia do jornal El Comercio mostra-o na sala de audiências, de gravata e casaco com losangos, a testa franzida e o olhar dirigindo-se ao alto, demonstrando incredulidade. Na última sessão do julgamento, em que foi considerado culpado de rapto e homicídio (a violação não ficou provada), proferiu uma frase que lhe ficou colada: “Eu cometi muitos delitos, fui um homem mau, mas este crime não me pertence.”

Jorge Villanueva Torres viria a ser executado por fuzilamento a 12 de Dezembro de 1957 na Penitenciária de Lima. Oito guardas republicanos dispararam sobre ele, enquanto no exterior se reunia numerosa multidão e havia venda de comes e bebes e de fotografias do suposto criminoso. Gritou uma última vez que era inocente, o que mereceu este título do jornal La Crónica: “Até no fuzilamento o monstro se mostrou cínico.” Na edição vespertina de El Comercio podia ler-se, a página inteira: “Fuzilaram o monstro. Pagou com a sua vida o crime abominável que cometeu na Quebrada de Armendáriz.”

Já depois da execução de Villanueva, começaram a surgir relatos de supostas contradições no testemunho de Ulderico Salazar, que ainda terá declarado publicamente um desejo que acicatou muita especulação: “Espero que a sociedade me dê um trabalho estável para manter os meus três filhos.”

Passados 50 anos do crime, em 2004, o director da morgue de Lima à data dos factos revelou que as perícias médico-legais então feitas continham erros e que, por isso, a teoria policial estava errada desde o princípio. A sua versão era a de que o menino fora atropelado por um automobilista e caíra pela ribanceira abaixo – e que isso, sim, lhe tinha provocado a morte.

A pena de morte só viria a ser abolida no Peru em 1979. Este caso manteve-se vivo na memória colectiva do país, de tal forma que em 2017, quando em Lima estreou uma peça de teatro nele baseada, um responsável do poder judicial declarou que se poderia fazer uma revisão processual e talvez absolver Jorge Villanueva Torres postumamente. Até ao momento, isso não aconteceu.

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