E o prémio para o melhor tomate do Douro vai para António Manuel Pina

Em 2015 eram oito concorrentes e uns 50 convidados. Na última sexta-feira estiveram 25 produtores e 250 pessoas nos jardins da Casa de Mateus. A grande festa do Douro faz-se com tomate.

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António Manuel Pina, da Casa Quinta de Ferreiro, venceu o concurso do melhor tomate-coração-de-boi-do-douro do ano Nelson Garrido
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Usemos a cultura do vinho do Porto para registar que, este ano, em matéria de tomate-coração-de-boi, não houve declaração de Porto Vintage clássico, mas sim de Vintage de Quinta. No geral, faltou ao tomate-coração-de-boi-do-douro mais doçura, mas de uma ou de outra quinta provaram-se tomates de categoria. Quem foi o culpado? O suspeito do costume: o tempo, que foi fraquinho em matéria de calor constante nos meses de Junho e Julho. Os tomateiros são umas princesas no trato. Sem calor forte, não dão frutos que nos fazem levitar. É a vida.

Todavia, quando, em mais uma edição da Festa do tomate-coração-de-boi-do-douro (a 23 de Agosto, na Casa de Mateus, em Vila Real), apareceu na mesa um exemplar catalogado com o número 20, de imediato se percebeu que estávamos perante um candidato ao título. Pela forma, pela textura firme e quase sem lóbulos e sementes visíveis, pelo equilíbrio entre açúcares e ácidos, pelo brilho ao corte e pelo prolongamento de sabores, era algo que iria chamar a atenção dos 13 jurados do concurso. Feitas as contas, o vencedor era a Casa da Quinta de Ferreiros. Quem? Como? Perdão? De onde? Pois. Mais um ano, mais uma surpresa. Em vez de uma quinta de renome do Douro, uma ilustre casa desconhecida levou a taça para casa. Em segundo lugar ficou a Wine & Soul (repetente no pódio) e, em terceiro, a Casa de Mateus.

Dentista de profissão, António Manuel Pina, responsável da Casa Quinta de Ferreiros, não só teima em tornar a propriedade que recebeu economicamente viável como tem uma fé inabalável na qualidade daquilo que produz em Lamego, com destaque para o tomate, o azeite e os citrinos. “Não tenho qualquer problema em afirmar que o que produzo aqui tem muita qualidade. E foi por isso que me inscrevi no concurso: para perceber se tinha ou não razão”. Pelos vistos, tinha.

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Vencedor do concurso do tomate-coração-de-boi-do-Douro 2024 Nelson Garrido

O comentário do médico é uma tese que toda a gente do Douro sabe, mas que teima em chegar à fase de doutrina. Em virtude das condições edafoclimáticas (solos de xisto ricos em micronutrientes, calor, luz solar e amplitudes térmicas), há um conjunto de produtos agrícolas que atinge uma qualidade de aromas e sabores que não se encontram noutros territórios. Nem só de uvas devia viver o Douro, mas também de azeite (complexidade), de citrinos, de amêndoa, de figos (ai os figos), de morangos e de muitas outras coisas que se comem. Quando se termina uma visita à horta de Abílio Tavares da Silva, na Quinta de Foz Torto, sai-se com uma profusão tal de aromas na roupa e nas mãos que a dada altura não sabemos se aqueles cheiros são dos morangos, dos orégãos, da rama de tomate, dos pimentos padrón, da rúcula, do alecrim, do limão, das flores das tílias ou das avelãs. No Douro, a natureza injecta maior intensidade de aromas e sabores em tudo o que é planta. Até uma folha de louro faz milagres num estufado. Muito nos admira não haver por aqui residências de perfumistas. Distracção, só pode.

António Pina confessa-nos que leva a sério a selecção das sementes de colheita para colheita, sejam elas feitas por si ou por um hortelão de Lazarim - o senhor Carvalho -, que, segundo o dentista, é alguém com jeito para escolher a semente dos melhores exemplares de cada temporada. “Todos os anos meto plantas que seleccionei, à mistura com plantas do senhor Carvalho”.

De resto, Erika Zandonai - uma hortelã italiana que esteve no evento a convite da organização - dissertou sobre a importância de se saber escolher as sementes e impedir, tanto quanto é possível, polinizações cruzadas, por forma a evitar o aparecimento de exemplares desviantes do padrão das variedades.

Pelo facto de viver no Norte de Itália, onde o frio manda, Erika passeia vezes sem conta os tomateiros pequenos do interior da habitação para o ar livre, consoante o estado do tempo, num exercício que parece o processo de aclimatização dos alpinistas à rarefacção do oxigénio na montanha. Tudo isso para que, chegado o mês de Agosto, se divirta a comer tomate fresco e a conservá-lo em diferentes modos para consumo ao longo do ano. Uma cozinheira italiana não vive sem tomate e preparados de tomate.

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António Pina, da Casa Quinta de Ferreiros Nelson Garrido

E quem diz tomate diz curgetes, diz beringelas, diz azeite, diz sálvia, diz salsa, diz limão e, claro, pasta. Erika aproveitou para mostrar como se tratam correctamente as curgetes (em carpaccio ou estufadas), como se fazem gnocchis de farinha acompanhados de petingas e temperados com sálvia frita (divinais) e como se prepara uma pasta com passata feita por si.

A organização da Festa do Tomate Coração de Boi lançou nesta edição - com apoio de três associações de desenvolvimento local - um livro sobre o tomate (Tomate Coração de Boi – A Outra Riqueza do Vale Mágico), um Guia de Boas Práticas e um Mapa das Quintas Produtoras de Tomate Coração de Boi do Douro.

Em colaboração com a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e com o Banco de Germoplasma de Braga pretende-se estudar, conservar e disponibilizar à comunidade sementes que garantam a identidade da variedade, bem como ajudar os agricultores a resolver alguns problemas de cultivo dos tomateiros. Puro serviço público.

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Casa Quinta de Ferreiro Nelson Garrido

Numa região dependente da monocultura da vinha, a venda de tomate em fresco pode ser uma fonte de rendimento para qualquer família que tenha um pedaço de terra, visto que a restauração sabe que o fruto é importante nas ementas em Julho, Agosto e Setembro.

Por outro lado, devíamos transformar o tomate-coração-de-boi-do-douro para ser consumido ao longo do ano, coisa que evitaria comprarmos preparados de tomate feitos noutras latitudes. Sim, o Douro jamais servirá para produzir tomate em escala. Mas, por ser raro, escasso e pouco dado a viagens longas, é um fruto com poder de atracção turística. A festa na Casa de Mateus e na capela de Arroios, com gente de todo o país e de todas as classes sociais, com produtores de vinhos, de azeite e de sal, com chefs incansáveis, com hortelãos e com amigos que se juntam aqui há nove anos, revela bem como um produto pode criar riqueza no território, quer pela componente lúdica e sensorial, quer pela componente cultural. No debate na Casa de Mateus, Jorge Sobrado, vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDRN), falou do tomate como “um bem cultural que participa na identidade do território” e o embaixador Álvaro Mendonça, presidente da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP), destacou o fruto como “elemento de memória que deve entrar na formação do gosto das novas gerações”.

Agora, é só ir ao Douro almoçar e passar por um mercado municipal ou parar na beira da estrada, perguntar por um hortelão e trazer algum tomate para fazer compota, sopa fria ou uma tomatada com ovos escalfados (se o tomate chegar um pouco moído não há problema). Que não falte imaginação. Os preços por quilo andam este ano entre os 3€ e os 4€. Por favor, não digam que é caro.

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