Para a Maria (dez anos) “estar com pessoas diferentes não é uma questão” — nem na Arábia Saudita

A Amiga Saudita, livro de Catarina Leonardo, aconteceu num país com um rei e mulheres cobertas de preto. É “uma desculpa para se falar sobre alguns assuntos” com crianças — e não só.

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Maria nas ruas de Jeddah Catarina Leonardo
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A amiga saudita chama-se Nayla e o amigo Sultão. O país chama-se Aurora Saudita — ou será Arábia Saudita? —, "um lugar mágico e misterioso coberto por um vasto deserto dourado", com um rei, homens que usam kandura, "tão branca como as nuvens", mulheres cobertas de preto, "como o céu numa noite sem estrelas" e onde todos param cinco vezes ao dia, para a salat. Maria tinha sete anos quando os pais a levaram a explorar o país do Médio Oriente. Durante a viagem, a mãe, Catarina Leonardo, escreveu um diário através dos olhos da filha. "Sei que é uma pequena gota no oceano, mas gostava que este livro fosse uma ferramenta, uma desculpa para se falar sobre alguns assuntos", diz à Fugas.

Na capa de A Amiga Saudita - Uma Viagem em Família (Flamingo Edições; sessão de lançamento no dia 14 de Setembro, pelas 14h, no Soho Club, Lisboa), Maria ouve a chamada para a oração na aldeia "charmosa" de Ushaiqer, ruas estrelinhas aos ziguezagues, e, com uma bailarina na mão, vai espreitar o interior de um templo. "Vamos espreitar para ver como é a vida dos sauditas", traduz a autora do livro, que não quer ser um guia de viagens nem muito menos um manual de instruções de como viajar com crianças. "Quando chegámos à Arábia Saudita, percebi o impacto nos adultos e na Maria e percebi 'é sobre isto que quero escrever'." Catarina tirou todos os dias notas de um país "desafiante, tão diferente do nosso e longe da zona de conforto" de toda a família — juntos já fizeram 59 viagens fora de Portugal —, e percebeu que havia muitas lições a retirar e a transmitir a outras crianças, pais, educadores e a "qualquer pessoa que veja que esta questão da tolerância verdadeira é realmente um valor importante".

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Maria na aldeia "charmosa" de Ushaiqer DR

"Espero com todo o meu coração que esta história de amizade possa ser uma pequenina semente que fique em cada criança que a folhear. E que, a seu tempo, possa desabrochar", escreveu no prefácio, em que cita a Declaração dos Direitos das Crianças ("Que a educação de todas as crianças do mundo lhes permita viver numa sociedade livre. Com profundo espírito de amizade entre pessoas de diferentes grupos étnicos, nacionalidades e religiões".

Catarina admite que os preconceitos surgiram quando pensou viajar com o Ricardo e a Maria para a Arábia Saudita. "Mas ao aterrar em Riade procurei abrir totalmente a minha mente", diz. E isso permitiu-lhes percorrer milhares de quilómetros ao longo de um mês, de carro, ter "experiências maravilhosas" e fazer "amizades inesquecíveis". "Construir novas amizades é uma das experiências mais simples, puras e bonitas que nos pode acontecer, quer no sítio que chamamos de casa, quer em locais desconhecidos que exploramos em viagem. Cada um de nós é um ser complexo, um belíssimo mosaico de experiências, moldado por contextos e histórias únicas. Acredito que não devemos fazer julgamentos ou sentirmo-nos superiores de alguma forma. Pelo contrário, o caminho deve ser ouvir, aprender e, acima de tudo, aceitar."

Para a história fica a amizade guardada "num cantinho bem especial" com Nayla, mulher saudita, cuja "conexão genuína e carinho transcenderam barreiras culturais e preconceitos". "Falei várias horas com ela, conheci a sua casa, jantei com ela, abracei-a, troquei contactos. Por detrás da abaya e do niqab preto, senti todo um universo de curiosidade, carinho e empatia", conta Catarina Leonardo, bloguer de viagens ("escritora ainda não me atrevo"), de 44 anos, que desistiu de ser consultora mais ou menos quando nasceu Maria — que voou pela primeira vez com dois meses.

A Amiga Saudita Catarina Leonardo
A Amiga Saudita Catarina Leonardo
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A Amiga Saudita Catarina Leonardo

A Amiga Saudita é sobre amizade, hospitalidade e partilha. "'É mesmo sobre isto que quero escrever!'". Tem fotografias cartoonizadas (para ser mais bem digerido por crianças e adolescentes), palavras árabes e muito da religião e dos costumes muçulmanos. "Sinto que vivemos num mundo onde, apesar de existir uma vasta informação, muitas vezes temos ideias erradas do outro. A cada viagem que faço em família com a Maria vejo o quão enriquecedor é para uma criança descobrir a maravilhosa tapeçaria de culturas que o mundo oferece. A evolução e a tomada de consciência é maravilhosa", escreve nas primeiras páginas do livro, que poderá ser traduzido em árabe e cujas cenas poderão vir a ser interpretadas num palco.

Catarina Leonardo gostava de escrever Uma Viagem em Família por ano. Maria viaja nas férias escolares e falta os dias todos que tem para faltar. Arábia quê? "Os colegas riam-se porque pensavam que ela tinha inventado um país. Agora há o Ronaldo e perceberam que é verdade." É apaixonada por animais e já dá sugestões de próximos destinos ("voltar ao Kruger ou ir à Austrália"). Conhece a religião muçulmana "melhor do que muitas crianças ou até adultos". A experiência, diz a mãe, dá-lhe "capacidade de adaptação". "Nunca está mal se faz uma longa viagem de autocarro ou uma noitada num aeroporto. Para ela, estar com pessoas diferentes não é uma questão. Como ir à piscina com miúdas da idade dela todas vestidas."

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Maria no Reino Nabateu Catarina Leonardo
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