Metade da carga de navio com bandeira portuguesa vai para empresa de armamento israelita

Ministro dos Negócios Estrangeiros revela nova informação sobre o polémico navio com bandeira portuguesa que foi proibido de atracar na Namíbia. Governo pondera retirada de pavilhão.

Navio com bandeira portuguesa transporta material para fabrico de armas em Israel Helena Pereira, Susana Madureira Martins (Renascença)
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Afinal, o navio com bandeira portuguesa que foi impedido de aportar na Namíbia transporta material que será usado por três fabricantes de armamento e um deles é israelita. A informação foi avançada, em entrevista ao PÚBLICO-Renascença, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, que diz ter obtido mais dados do armador do navio. O material, de duplo uso, será descarregado no Montenegro e na Eslovénia e depois seguirá para Israel e dois países da NATO, a Polónia e a Eslováquia. Rangel diz tratar-se de uma matéria "jurídica complexa" e que o Governo ainda não tomou qualquer decisão sobre a eventual retirada do pavilhão português ao navio.

Emmanuel Macron, Presidente francês, já defendeu o envio de tropas de países aliados para a Ucrânia. Qual é a posição de Portugal sobre esta possibilidade?
A posição de Portugal tem sido sempre concertada no quadro da União Europeia e no quadro da NATO nesta matéria, e é evidente que o que Portugal tem feito é um apoio à Ucrânia no plano económico, financeiro, político, humanitário e militar também. É uma matéria na qual o Ministério da Defesa tem sempre uma palavra determinante, mas não está em causa, do ponto de vista português, um envolvimento – nem deve estar – da NATO ou da União Europeia, ou de um grupo de Estados. Neste momento, é algo que está excluído.

A prazo, é inevitável o arrastamento da NATO para a guerra da Ucrânia?
Não. A estratégia global está definida, é a de não-envolvimento da NATO nesta guerra, embora haja o apoio claro destes países à Ucrânia, ao seu direito à legítima defesa, ao seu direito a manter a integridade territorial e toda a soberania.

Na semana passada, o Presidente norte-americano admitiu pela primeira vez a possibilidade de permitir o uso dos mísseis de longo alcance fornecidos à Ucrânia para atacar a Rússia. Qual é a posição de Portugal sobre isso? Concorda com a posição do Presidente norte-americano?
O Presidente norte-americano, tanto quanto sabemos, não tomou ainda uma posição definitiva sobre essa matéria. E essa é uma questão que não nos compete. O armamento que temos fornecido não tem essas características. Estas são matérias de exclusiva competência bilateral, cada Estado define o quadro em que o material militar que fornece pode ser usado.

Se a situação evoluir, Portugal há-de ter uma posição sobre se vê como razoável ou justificável que este armamento seja utilizado em solo russo, ou não?...
A Ucrânia acaba de passar a ter actuação em solo russo, normalmente na região de Kursk, no quadro da legítima defesa.

Em relação ao navio com bandeira portuguesa, denunciado como dirigindo-se a Israel, mantém que se dirige ao Montenegro e à Eslovénia e que não transporta armas, nem munições, nem material de guerra, embora transporte explosivos?
Este barco não se dirige a Israel, dirige-se a dois portos no Adriático, um na Eslovénia e outro no Montenegro. Quando eu falei, o que sabíamos é que transportava material explosivo, que, no fundo, é o material que seria utilizado pelos compradores para os fins próprios das suas firmas e das suas empresas. Entretanto, continuámos a receber novas informações e ficou estabelecido que o material se destina a três países, um deles Israel. O barco terminará o seu frete no mar Adriático (num porto no Montenegro e noutro na Eslovénia), e depois o material segue por outros barcos, ou via terra, para a Polónia e para a Eslováquia. Metade do material vai para a Polónia e para a Eslováquia, metade do material vai para Israel. É a informação que temos, depois de interrogado o armador, que tem respondido até agora com um grau de credibilidade que nos parece perfeitamente normal e aceitável.

E isso, para Portugal, não tem problema?
A questão não é se tem problema. Eu estou a dar a informação toda. As empresas são de três nacionalidades, todas elas são empresas de fabrico de armamento, portanto o material que está no barco é um material de duplo uso, ou seja, pode ser utilizado para armamento, pode ser utilizado para, por exemplo, construção em obras públicas, túneis, pedreiras, etc., portanto é um material explosivo, mas de facto as empresas que são o destino final todas elas fabricam armamento – sobre isso não há dúvidas –, embora com uma cláusula que exclui as armas de destruição maciça.

Para Portugal, isso não é desconfortável?
Estamos neste momento ainda a analisar a situação e estamos em contacto com as autoridades, portanto, ao contrário do que se pensa, Portugal não está parado. Isto é uma questão jurídica muito complexa, não é uma questão simples. Não há nenhuma razão jurídica efectiva à data para retirar o pavilhão. Pode haver razões de índole política, com certeza.

Por razões políticas, o Governo não pode tomar essa decisão?
Nenhum Governo em Portugal teve até agora a atitude que este Governo teve...

Qual é a atitude que este Governo teve?
Proibir a exportação de armas para Israel. Temos de olhar para isto também com justiça. Vejo partidos que defendem o reconhecimento da Palestina, mas quando tiveram poder efectivo nunca contribuíram para isso, em 2015 e até em 2022. E agora exigem-no a este Governo, que foi o único que até agora, na Assembleia Geral das Nações Unidas, votou a favor da admissão integral, ou seja, de membro de pleno direito, da Palestina. Este Governo ainda hoje vai votar a favor de uma resolução nas Nações Unidas apresentada pela Palestina a propósito das conclusões do Tribunal Internacional de Justiça.

Este Governo proibiu este mês o sobrevoo de um avião que vinha dos Estados Unidos para Israel com armamento. Portanto, eu não recebo lições de moral de ninguém, nem este Governo recebe. Portanto, vamos pôr as coisas no seu contexto.

Neste momento, estamos em consultas, em termos de circulação deste barco. Em termos jurídicos, em termos de direito internacional, ao contrário do que dizem certas plataformas, não há um risco real nem um risco sério, que é aquilo que seria exigível para esse efeito [de retirar o pavilhão português]. Mas estamos ainda a fazer diligências. Não tenho sobre essa matéria uma posição definitiva, mas tenho um registo que pede meças.

O Governo da Namíbia, com conhecimento de tudo, autorizou a entrada no porto. Só a revogou depois, diante dos protestos que houve. No caso português, nós, até aqui, não tínhamos conhecimento.

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Existem ou não fundamentos para o Governo retirar a bandeira? Ainda pode fazer isso?
Pode ou não. É uma questão jurídica complexa. Este barco não vai para Israel. É o primeiro ponto. Ele não carrega armamento, carrega material de duplo uso. Parte desse material vai para países como a Polónia e como a Eslováquia, que são países aliados da NATO, com os quais temos compromissos e que produzem armamento que provavelmente irá para a Ucrânia ou irá para a sua própria defesa. É preciso ter em conta que a questão é muito mais complexa.

Sobre este armamento que Portugal impediu que migrasse dos Estados Unidos para Israel, em que condições é que isto aconteceu?
A decisão formal foi tomada a 10 de Setembro. Teve a ver com o direito de escala nas Lajes e o sobrevoo.

Tendo em conta as eleições nos Estados Unidos da América, em Novembro, acha que vem aí um qualquer apocalipse ou não, no caso de uma vitória de Donald Trump?
As relações entre Portugal e os Estados Unidos são relações de Estado a Estado. Qualquer que seja o resultado eleitoral, Portugal terá sempre os Estados Unidos como parceiro preferencial. Como todas as relações entre Estados, há momentos em que elas são mais fáceis, há momentos em que elas são mais difíceis, há momentos em que elas florescem de um modo altamente positivo, há momentos em que têm algum stop and go, ou seja, têm alguma inércia.

Entre Trump e Kamala Harris, seria difícil para si escolher?
Para mim, pessoalmente, não seria difícil escolher. Mas, como sou o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, as minhas preferências pessoais não contam. O que conta é a relação Estado-Estado.

Maria Luís Albuquerque vai ter a pasta dos serviços financeiros na Comissão Europeia. Esta era a pasta mais desejada pelo Governo português?
É uma pasta estratégica. A união de mercado de capitais é verdadeiramente a alavanca em termos de futuro financiamento da União Europeia e desenvolvimento de uma economia próspera. Portanto, Portugal vai estar no centro da construção da resposta que a União Europeia tem de dar no plano global.

O primeiro-ministro tem dado cartas na Europa. Teve um papel decisivo na escolha de António Costa para presidente do Conselho Europeu, especialmente ali numa fase em que poderia ter havido uma inversão num caminho que estava a ser muito bem preparado pela diplomacia portuguesa e pelo próprio. E agora voltou a ter um papel decisivo na atribuição de uma pasta, que é uma pasta com um conteúdo efectivo que pode mudar a vida dos europeus e que pode mudar a própria forma de financiamento da economia europeia.

Mas a ex-ministra das Finanças ainda terá de passar pelo escrutínio do Parlamento Europeu, antes de ser formalmente nomeada comissária. Está confiante que não terá problemas em ser aprovada, tendo em conta a polémica que envolveu a sua transição de ministra das Finanças para o sector privado?
Nenhum. São processos exigentes de escrutínio, não os desvalorizamos. Agora, estou absolutamente confiante que o currículo de Maria Luís Albuquerque é à prova de bala.

Depois das recentes declarações do ministro da Defesa sobre Olivença, gostava que esclarecesse qual é a posição do Estado português sobre aquele território...
A posição do Estado português e deste Governo é a posição de todos os Governos anteriores. Isso não é um assunto que esteja na agenda. Como o ministro da Defesa explicou, trata-se de uma posição pessoal, que eu, aliás, já conhecia porque privei com ele 15 anos no Parlamento Europeu, e que é uma posição do seu partido.

O ministro da Defesa, numa cerimónia enquanto ministro da Defesa, pode ter posições de líder partidário?
O ministro já esclareceu esse ponto. É um ponto que não está na agenda bilateral entre Portugal e Espanha. Vamos ter agora a Cimeira Luso-Espanhola e esse ponto não consta da agenda. Nem constará. Portanto, a posição do Governo português é a posição de sempre.

Que é território português, mas Portugal não está interessado em reclamá-lo? É deixar estar como está?
Não é um assunto que esteja na agenda, e portanto não vale a pena estarmos a explorá-lo, porque ele não está nem vai estar na agenda.

Não foi uma gafe do ministro da Defesa?
Eu, sinceramente, não vou qualificar. Acho que ele deu a sua explicação, e eu, não só como colega leal, mas também, até como alguém que com ele conviveu bastante, e que tem uma relação de amizade, respeito a explicação que ele deu.

Obviamente que o Estado português está perfeitamente dentro daquela que era a linha dos Governos anteriores, sem qualquer alteração.

Mas gostava de pedir-lhe que explique, pelas suas palavras, qual é essa posição...
Não vou explicar mais nada. Tudo o que tinha a dizer sobre isto, já disse, e não vou dizer rigorosamente mais nada.

Alguma autoridade espanhola pediu algum esclarecimento a Portugal na sequência daquela declaração?
Não. Cada coisa tem a sua importância. Demos importância àquilo que é verdadeiramente importante.

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