Só porque tem proteína, não quer dizer que seja bom…

Nos últimos meses/anos, começaram a aparecer no mercado alguns produtos que podemos apelidar de “oportunistas da proteína” e que se aproveitam da falta de literacia nutricional.

Foto
É importante perceber que existem poucos produtos onde a adição de proteína faça sentido Getty Images
Ouça este artigo
00:00
06:28

Todas as modas têm o seu lado “B”. É uma inevitabilidade histórica com que todos nos deparamos em variados contextos. De 2016 para cá, começaram a surgir no mercado os célebres iogurtes proteicos skyr e aproveitando um volume científico crescente que dava conta de um potencial positivo da proteína em vários aspectos — saciedade, manutenção/aumento massa muscular e massa óssea após o emagrecimento, melhoria rendimento desportivo — observou-se um sucesso enorme de vendas e corridas matinais aos supermercados para garantir a compra antes que esgotassem.

A partir daí, o resto é história.

Em 2024 existem leites, iogurtes líquidos e sólidos, pudins, mousses, barras e gelatinas proteicas com vários sabores, formatos e que vão quase de forma crescente dos 10 aos 35g de proteína. Até para os nutricionistas é difícil acompanhar as novidades quase semanais que vão surgindo neste segmento de mercado. De igual modo, também se massificou a venda de suplementos proteicos em pó e até creatina, já não sendo necessário ir a lojas especializadas de suplementos, podendo ser encontrados facilmente em hipermercados.

Até aqui está(va) tudo bem. Estes produtos são aliados da nossa saúde; a proteína, se utilizada na medida certa e prescrita por um nutricionista, faz todo o sentido, até porque cada vez mais estão desmistificados os potenciais riscos da ingestão proteica na saúde renal.

Nos últimos meses/anos, aproveitando a boleia desta boa “moda”, começaram a aparecer no mercado alguns produtos que podemos apelidar de “oportunistas da proteína” e que, embora estejam em pleno direito de serem lançados, se aproveitam da falta de literacia nutricional de grande parte das pessoas. Tentam sobressair com um “Proteína” em letras garrafais na embalagem e captar a atenção de um consumidor que se julga actualizado e em busca das melhores opções.

É importante perceber que existem poucos produtos onde a adição de proteína faça sentido. Estamos a falar sobretudo dos lacticínios e, mesmo nesses, nem todos estão abrangidos. Hoje, já é possível comprar um queijo high protein com 31% proteína (ao invés dos 25-27% de um queijo magro e dos 20-24% de um queijo “normal”). Se para os apreciadores de queijo, trocar queijo “normal” por queijo magro já pode ser praticamente comer “borracha”, um aumento ainda maior do seu teor de proteína e diminuição de gordura já o tornam noutra coisa que não propriamente “queijo”.

De igual modo, existem produtos que todos apreciamos, mas sabemos que não são para consumo diário em grandes quantidades como chocolates, bolachas e gelados. Também estas três categorias estão a ser “invadidas” por produtos proteicos e apesar de nos gelados existirem alguns casos em que a composição nutricional não é nada má, a questão impõe-se: se me apetecer comer um gelado, um chocolate ou um cookie, tenho mesmo de escolher os produtos proteicos? Não me posso dar ao “luxo” de ingerir essas 100-200-300kcal, dependendo do plafond calórico de cada um (consoante o que treina e o objetivo de composição corporal) nas versões normais? Se a apetência por estes alimentos é sobretudo pela questão organolética, vale a pena escolher uma opção proteica com redução (ou não) de açúcar e gordura e que não vai ter o mesmo sabor? Existem também alguns casos em que nem sequer existe redução de gordura e açúcar e apenas se acrescenta proteína, na expectativa de que esta mudança desculpabilize o consumo e sirva de cosmética nutricional. Um chocolate que tenha proteína não deixa de ser um chocolate, da mesma forma que um croissant integral não deixa de ser um croissant. Ambos têm uma diferença perversa: têm as mesmas calorias, mas sabem pior.

O segmento dos cereais tem sofrido várias mudanças no sentido de se adaptar a novas tendências. Algumas são boas: existem no mercado cereais com cada vez menos açúcar, mais fibra e proteína, que provam que é possível lançar no mercado produtos equilibrados nutricionalmente e com bom sabor; outras nem tanto — cereais “zero” que trocam açúcar por farinhas hidrolisadas (que podem elevar ainda mais a glicemia do que o açúcar), mais caros e sem o sabor original é um desses exemplos, e a moda da proteína também acabou de chegar aqui. Farinha de aveia já enriquecida com proteína é um dos casos onde o consumo é legítimo, mas porventura mais cara do que comprar aveia e whey isoladamente e fazer a mistura com o rácio desejado por cada um. O mesmo acontece com outros cereais com 25% de proteína (vegetal) e com as mesmas calorias da versão normal. Percebe-se a ideia, permite até ter um Nutri-Score mais atraente, mas o ganho nutricional não é assim tão relevante.

Com o pão, o discurso é semelhante… o pão tem de ser pão, não precisa ser “pão proteico” porque grande parte das vezes o é à custa de adição de glúten que — polémicas à parte (ser “intolerante” ao glúten já não está tão na moda) — é a proteína vegetal de pior qualidade. O melhor pão proteico é aquele feito com cereais integrais e que no seu interior leva queijo flamengo (magro, mas não hiperproteico), queijo fresco ou mozarela light, ovos ou até salmão fumado.

Terminando com as barras de proteína que também podem ser uma boa e conveniente opção, sobretudo quando não for possível encontrar coisas melhores (em máquinas de vendas, áreas de serviço, aeroportos/viagens de avião onde não pode passar com bebidas proteicas), mas é mais um caso onde o facto de ter proteína não é garante de nada. Barras com boa quantidade de proteína (acima de 20g) e poucas calorias à custa de gordura e açúcar (menos de 180-220kcal e 7-10g gordura por barra) contam-se pelos dedos de uma mão entre as centenas que podem existir e tentar respeitar os targets nutricionais acima descritos pode ser uma boa ajuda.

Uma palavra final para o consumo destes produtos em crianças. Apesar de não ser nenhum “veneno” e muitas vezes serem mais equilibrados do que outros produtos populares nestas idades (bolos, bolachas, cereais e refrigerantes açucarados e menus infantis cheios de fritos em restaurantes), não são, de todo, necessários. Sendo a proteína um nutriente “construtor”, as suas necessidades são em função do nosso peso corporal. Nestas idades, o peso é menor e grande parte das vezes já se come demasiada carne/peixe/ovos nas refeições principais, por isso o seu consumo poderá apenas ser útil numa fase pós-pubertária em que, após o pico de crescimento de altura, o peso do adolescente já justifique um extra de proteína na alimentação (desde que também não coma quantidades de proteína no prato de forma alarve, como é igualmente característico desta faixa etária).

Demorou muito tempo até os profissionais de saúde e a população perderem o medo da proteína e dos suplementos proteicos. Até pelo facto de ser o nutriente com maior pegada ambiental, seria ótimo que esta moda não fosse estragada e que a proteína não fosse desperdiçada em alimentos de qualidade nutricional duvidosa e oportunista.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários