Esposende e Cávado, um roteiro fora de época

Viagem entre Esposende e Barcelos, com vagar para apreciar a beleza das coisas que o tempo aperfeiçoou. Sim, falamos de vinhos, mas também de doçaria, de cozinha de aconchego e de confortos modernos.

iniciativas-publico,minho,esposende,barcelos,vinhos,gastronomia,
Fotogaleria
vinhas e palacete do hotel boutique Solar de Vila Meã, Barcelos Maria João Gala
iniciativas-publico,minho,esposende,barcelos,vinhos,gastronomia,
Fotogaleria
vinhas e piscina do hotel boutique Solar de Vila Meã, Barcelos Maria João Gala
iniciativas-publico,minho,esposende,barcelos,vinhos,gastronomia,
Fotogaleria
Sopa de peixe, restaurante Barro, hotel boutique Solar de Vila Meã, Barcelos Maria João Gala
iniciativas-publico,minho,esposende,barcelos,vinhos,gastronomia,
Fotogaleria
solar da Quinta de Balão, Barcelos Maria João Gala
Vinho
Fotogaleria
vinhos da Quinta de Balão, Barcelos Maria João Gala
Chá de ervas chinês
Fotogaleria
prova de vinhos na Quinta de Balão, Barcelos, tinto de vinhão na malga Maria João Gala
,Pavlova
Fotogaleria
Bolo bolacha, no restaurante Sra. Peliteiro, Esposende Maria João Gala
iniciativas-publico,minho,esposende,barcelos,vinhos,gastronomia,
Fotogaleria
Kitesurf na foz do Cávado, Esposende Maria João Gala
Anna Costa - Restaurante Pedra Furada - comida tradicional portuguesa - bacalhau - pudim abade
Fotogaleria
Irmãos António Herculano e Angelina, restaurante Pedra Furada, Barcelos Anna Costa
Anna Costa - Restaurante Pedra Furada - comida tradicional portuguesa - bacalhau - pudim abade
Fotogaleria
Bacalhau no restaurante Pedra Furada, Barcelos Anna Costa
Ouça este artigo
00:00
16:59

Sonhar nunca fez mal a ninguém, desde que a pressa não seja demasiada. Carla Rolanda sabe-o bem. Afinal, o seu sonho não era coisa pouca, pelo que teve de esperar uns bons anos para concretizá-lo. Queria ter um palacete, mas não um palacete qualquer. Queria este em específico, o Solar de Vila Meã, e resgatá-lo de décadas de decadência.

Conseguiu comprá-lo em 2012, mas, mesmo após a aquisição, teve de refrear o entusiasmo, medir bem os seus planos para a propriedade, e nisto se passou outra dúzia de anos. É preciso dar tempo ao tempo. Afinal, ele é o melhor conselheiro, lembra-nos a sabedoria do povo.

O povo, esse não tardou a aparecer por ali, mal o Solar de Vila Meã abriu portas como hotel boutique – oficialmente em Junho deste ano, após sete meses de soft opening. “Muita gente daqui tinha curiosidade de ver como isto era por dentro”, conta Carla. Uma curiosidade que ela, de resto, compreendia bem.

Carla lembra-se das passagens frequentes, em criança, pela estrada que passa diante dos portões da propriedade – a N204, que liga Famalicão a Barcelos, de onde é natural. E de, no banco de trás do carro dos pais, ficar de olhos vidrados no solar abandonado, a imaginar coisas. “Esta casa sempre me encantou”, conta, enquanto abre as portadas da janela, trazendo a luz do dia para dentro do quarto, onde abundam os elementos texturados, os tons térreos e a cumplicidade entre uma sobriedade clássica e o colorido da tradição minhota. É preciso tempo para desembrulhar tudo o que o Solar de Vila Meã tem dentro, pelo que lá iremos adiante.

Foto
Após uma longa espera, Carla Rolanda transformou finalmente o Solar de Vila Meã num hotel boutique rodeado de vinhas. “Esta casa sempre me encantou”, conta. Maria João Gala

Começando por Esposende

Susana de Brito também é natural de Barcelos e terá perdido a conta às vezes que fez esta mesma estrada, nos tempos em que era comercial numa empresa de distribuição de vinhos. Sem grande risco de falhar, podemos até arriscar que também terá magicado planos para o solar, se olharmos ao tamanho da sua ambição.

Em apanhando-a ao balcão da garrafeira Terra Nova, à entrada de Esposende, não se tardará a ganhar a impressão de Susana ser uma daquelas pessoas que pegam a vida pelos colarinhos e não se contentam com meias respostas ou meias conquistas. A Terra Nova é uma dessas conquistas com todas as letrinhas.

“Cresci no meio das máquinas”, começa, para introduzir uma primeira carreira no têxtil, enculturada pela fábrica que a mãe tinha. “Era eu que fazia os vestidos das minhas bonecas.” Foi desenhista, estudou estilismo e criou a sua empresa de têxtil, com a qual teve alguns sucessos, mas também a sua conta de falhanços.

Reergueu-se e voltou-se para o mundo dos vinhos, coisa que já a apaixonava – ainda que, admite, “não sabia sequer o que era touriga nacional” quando assinou contrato de vendedora na tal empresa de distribuição. Esse trabalho fê-la conhecer muitas garrafeiras, onde foi recolhendo ideias, ao mesmo tempo que reunia os fundos para o investimento. De permeio, conta, “Viajei, fui a Bordéus, fui a Itália”, mais notas para o seu caderno de esboços.

Foto
Nas estantes da garrafeira Terra Nova, à entrada de Esposende, acomodam-se algo como duas mil referências de bebidas, onde cabem três dezenas de vinhos da região. Maria João Gala

Quando abriu a Terra Nova, em 2021, já tinha a lição bem estudada. “Tão importante como os clientes são os fornecedores”, assegura, para vincar a boa relação que mantém com os produtores – os locais, os regionais, os nacionais, mas também os internacionais. “Só assim consigo ter aqui bons vinhos”, orgulha-se, chamando a atenção para a sua oferta de champanhes de luxo.

Nas estantes do espaço sóbrio e acolhedor que nasceu de um esboço seu e do engenho do marido, que é electricista, acomodam-se algo como “duas mil referências de bebidas”, onde cabem três dezenas de vinhos da região. Com a vantagem de alguns estarem disponíveis para conhecer a copo, na companhia de alguns queijos. Tudo estudado com foco no objectivo central de “vender garrafas”. E de vendas percebe Susana.

Foto
Esposende vende-se pelo lado do mar. A marginal acompanha os metros finais do Cávado, que formam um lago com a restinga de três quilómetros que faz barreira com o Atlântico. Um cenário convidativo para caminhadas à beira da água. Maria João Gala

Rio, mar e açúcar em pó

Esposende vende-se pelo lado do mar. A marginal, oficialmente chamada Avenida Eduardo Arantes de Oliveira, começa logo ao dobrar o quarteirão, e acompanha os metros finais do Cávado, em redor dos quais se desenrola a pequena cidade costeira e o seu pequeno núcleo histórico. Diante dela estende-se o lago que o estuário do rio cria com a restinga de três quilómetros que o protege da rebentação do Atlântico. Junte-se-lhe a consistente nortada e estão reunidas as condições que fazem de Esposende um destino de kitesurf – e a quantidade de asas que por ali se podem contar, estendidas pelo vento, mostram não ser mero chavão turístico.

Mas esta é também terra de praia. À beira da cidade, há três que hastearam Bandeira Azul neste Verão: Marinhas-Cepães, a norte, Suave Mar, diante do farol, e Ofir, na margem sul do Cávado, todas dentro da área protegida do Parque Natural do Litoral Norte. Mesmo que o tempo já não esteja para se estender a toalha no areal, o apelo de olhar o mar dura todo o ano. Suave Mar fica a coisa de 15 minutos a pé do centro e oferece bons lugares para admirar pores-do-sol oceânicos. Ofir, por seu lado, com vários bares, esplanadas e encantadoras barraquinhas às riscas na época estival, é também convidativa e charmosa – assumindo que se ignore as torres de 12 andares que parecem ter caído do céu.

Fão, logo ali ao lado, contrasta pelo ambiente de aldeia – ou, a bem da verdade: pequena vila – que retém. Mesmo que muito do casario tenha sido modernizado, mantém as ruas tortas e estreitas, bem como um agradável passeio ribeirinho que acompanha a foz do Cávado até à restinga e, principal atracção, um tesouro vivo da doçaria nacional chamado “clarinhas”.

Para descobrir as “únicas e verdadeiras”, segundo sublinha Pedro Alves, há que procurar a Pastelaria Clarinhas. Pedro é o actual gerente e pasteleiro detentor do segredo deste pastel criado há mais de 100 anos pela sua tia-bisavó Rosália Mendes. A marca está registada desde 1947, pelo que, embora o doce seja um ex-líbris local, com várias casas a produzi-lo, mais ninguém pode usar a designação “clarinhas de Fão”. E, garante Pedro, “nenhuma é como esta”.

E o que é mesmo a clarinha? Um pastel leve em forma de rissol, com massa fina e muito crocante, recheado de um creme aveludado de gila, polvilhado por fora com açúcar em pó. A combinação de texturas e a doçura comedida garantem que sobra vontade de mais, pelo que é de pedir logo duas: uma para provar, a outra para comprovar.

A clarinha de Fão é um pastel leve, com massa fina e muito crocante, recheado de um creme aveludado de gila, polvilhado por fora com açúcar em pó. ,A clarinha de Fão é um pastel leve, com massa fina e muito crocante, recheado de um creme aveludado de gila, polvilhado por fora com açúcar em pó. Maria João Gala,Maria João Gala
Pedro Alves é gerente da pastelaria Clarinhas e detentor do segredo deste pastel criado há mais de 100 anos pela sua tia-bisavó Rosália Mendes. Maria João Gala
Fotogaleria
A clarinha de Fão é um pastel leve, com massa fina e muito crocante, recheado de um creme aveludado de gila, polvilhado por fora com açúcar em pó. ,A clarinha de Fão é um pastel leve, com massa fina e muito crocante, recheado de um creme aveludado de gila, polvilhado por fora com açúcar em pó. Maria João Gala,Maria João Gala

Cozinhas viajadas

Com a boca adoçada, deixa-se Fão e Esposende para trás, mas não se perde de vista o Cávado. A paragem seguinte fica-lhe mesmo à beira, duas curvas acima da foz. É rodeado pelo verde do clube de golfe da Quinta da Barca e pelas águas do rio – e com amplas janelas, para que não se perca pitada da vista – que se encontra o restaurante Sra. Peliteiro.

Importa avisar: aqui é fácil perder-se noção do tempo. Pelo magnetismo da tal vista, sim, mas também pela aura de sítio especial, onde de imediato nos sentimos bem acolhidos, com serviço a condizer, ensaiado e incansável. E um pormenor de volume: o conforto das cadeiras, sempre uma boa bitola para avaliar a duração esperada de uma refeição (ou, por outras palavras: a garantia de não haver ninguém a apressar-nos).

E depois há Paula Peliteiro, a senhora que dá nome à casa – e alma à cozinha. Além do sorriso desarmante e da simpatia que denuncia os anos passados no Brasil, a chef põe no seu trabalho tanto de reverência aos sabores da tradição como de atrevimento. Um atrevimento que lhe valeu alguns desafios no início, no primeiro Sra. Peliteiro, que abriu há 13 anos em Fão.

O restaurante Sra. Peliteiro (Esposende) está rodeado pelo verde do clube de golfe da Quinta da Barca e pelas águas do rio Cávado. Maria João Gala
Os ninhos de gambas em massa kataifi são um dos pratos icónicos do restaurante Sra. Peliteiro (Esposende). Maria João Gala
Os ovos gratinados com queijo da ilha têm lugar cativo na carta do restaurante Sra. Peliteiro (Esposende). Maria João Gala
No restaurante Sra. Peliteiro (Esposende), o estatuto de “greatest hits” aplica-se também ao arroz de robalo com gambas e marisco – de bago íntegro, caldo sápido e ponto de confecção milimétrico em todos os componentes. Maria João Gala
Boa vista, serviço incansável, cadeiras confortáveis e aura de sítio especial: é fácil sentirmo-nos bem acolhidos no Sra. Peliteiro (Esposende). Maria João Gala
Fotogaleria
O restaurante Sra. Peliteiro (Esposende) está rodeado pelo verde do clube de golfe da Quinta da Barca e pelas águas do rio Cávado. Maria João Gala

“Ainda era tudo muito costelinha de porco com arroz de feijão e peixe fresco”, conta, sem desprimor para tais clássicos locais. Mas quem acaba de chegar tem de diferenciar-se, é sabido. “Quis fazer algo de diferente e isso provocou estranheza.” A dada altura, a crítica de um blogger questionava até, “Quem disse à chef que polvo e laranja combinam?”. Paula ri-se. O prato continua na carta, à semelhança de muitos outros, e tirá-lo é garantia de reclamações. Nada como esperar pelo tempo para que ele nos venha dar razão.

E há que concordar, no que toca ao polvo assado com sumo de laranja, um prato original da mãe de Paula, a que juntou pimenta-da-terra, batatas grelhadas e um picado de cebola-roxa e couve-branca que quebram com frescura um prato de sabores quentes. Combina, sim.

Antes de chegar ao polvo e restantes pratos de substância, importa não deixar passar em branco os ninhos de gambas em massa kataifi, ou os ovos gratinados com queijo da ilha, outros dois com lugar cativo na carta. O estatuto de “greatest hits” aplica-se também ao arroz de robalo com gambas e marisco – de bago íntegro, caldo sápido e ponto de confecção milimétrico em todos os componentes –, assim como ao pernil de porco fumado, à vazia marmoreada ou à tajine minhota, outra das suas criações de assinatura que custou a pegar.

Foto
Paula Peliteiro dá nome e alma à casa. Além do sorriso desarmante e da simpatia que denuncia os anos passados no Brasil, a chef põe no seu trabalho no Sra. Peliteiro tanto de reverência aos sabores da tradição como de atrevimento. Maria João Gala
Foto
O polvo assado com sumo de laranja exemplifica a abordagem de Paula Peliteiro à cozinha. À receita da sua mãe juntou pimenta-da-terra, batatas grelhadas e um picado de cebola-roxa e couve-branca que quebram com frescura um prato de sabores quentes. Maria João Gala

É um exemplo do tal atrevimento acima referido, numa altura em que não havia uma grande cultura de “misturas na cozinha”. Paula trouxe-o da sua vivência, das suas viagens. “Se libertarmos a cabeça da cozinha, isso faz que depois regressemos e as coisas nascem de imediato.”

António Herculano também se encontrou através das viagens, ainda que numa altura em que viajar não era tão comum. Ele sabia que lhe tocaria – a ele e às irmãs, Angelina e Madalena – tomar conta do restaurante da mãe, na aldeia de Pedra Furada. Porém, antes de assumir esse compromisso para a vida, decidiu que tinha de ver o mundo, porque a realidade em redor lhe prendia os movimentos. “Isto era uma miséria, não havia nada”, conta, sem pinga de saudosismo pelos seus tempos de juventude. Portanto, quando terminou o liceu, decidiu “viajar um bocadinho”, com uma interrogação como ponto de partida: “Será que o mundo é todo assim?”

O restaurante Pedra Furada, na aldeia de Pedra Furada (Barcelos) fica à beira do Caminho de Santiago e são muitos os peregrinos que ali param, como atesta a parede de lembranças que António Herculano mostra com orgulho. Anna Costa
O pudim de ovos do restaurante Pedra Furada (Barcelos) é de antologia - e um dos motivos de orgulho de Angelina. Anna Costa
Restaurante Pedra Furada (aldeia de Pedra Furada, Barcelos) Anna Costa
À mesa do restaurante Pedra Furada (Barcelos), é campeão o bacalhau, servido com um ano de cura, em quatro preparações à escolha: cozido com todos, assado na brasa, com broa ou “à casa” (na imagem). Anna Costa
Fotogaleria
O restaurante Pedra Furada, na aldeia de Pedra Furada (Barcelos) fica à beira do Caminho de Santiago e são muitos os peregrinos que ali param, como atesta a parede de lembranças que António Herculano mostra com orgulho. Anna Costa

Foi a Paris sem passaporte, chegou a dormir na rua, mas visitou o Louvre. Para custear as suas andanças, ia arranjando trabalho em restaurantes, “como ilegal”. “Depois de quatro meses em Amesterdão”, passou pela Alemanha, Dinamarca e daí para o Canadá. Ao cabo desse ano regressou, de mangas arregaçadas. Meio século depois, hoje na casa dos 70, ainda é ele o anfitrião – daqueles de sorriso contagiante – do restaurante Pedra Furada, que cresceu desde os tempos da mãe e se fez referência gastronómica no concelho de Barcelos.

A viagem continua a fazer parte do ADN da casa, já que o Caminho de Santiago passa por ali e os peregrinos são clientela regular. Herculano mostra com carinho os livros de visitas e as recordações que lhe deixam.

Na mesa, é campeão o bacalhau, servido com um ano de cura, em quatro preparações à escolha: cozido com todos, assado na brasa, com broa ou “à casa”. No caso deste último, a posta de tamanho considerável é frita e empratada sob densa camuflagem de cebola frita e batatas fritas às rodelas, tudo de extrema competência.

Imperam também o arroz de tamboril, o polvo na brasa e, nas carnes, pratos substantivos como cozido, rojões, cabrito no forno e, por encomenda, o porta-estandarte da casa, o galo assado recheado à moda de Barcelos, que valeu já uma longa lista de prémios ao Pedra Furada. Nota final: o pudim de ovos é de antologia e põe, com certeza, muitos peregrinos de volta ao caminho com um sorriso nos lábios.

Foto
Os vinhos da Quinta de Balão beneficiam da localização no vale do rio Covo, que “acaba por ter um terroir próprio”, marcado por solos graníticos, calor suficiente para “garantir maturações perfeitas” e humidade que “mantém a frescura”, explica o enólogo e proprietário José Miranda. Maria João Gala

O que vale um bom vale

O negócio de José Miranda são os vinhos que produz na Quinta de Balão, mas o enólogo também tem uma ou duas coisas a dizer a respeito do galo. Como barcelense que é, por um lado, ainda que nascido na Póvoa de Varzim e criado em Moçambique. Mas sobretudo na qualidade de confrade-fundador da Confraria Gastronómica O Galo de Barcelos, entidade responsável pelo selo que certifica se o espécime cumpre os requisitos em matéria de alimentação, idade, peso.

“Nem todos os restaurantes servem galo certificado”, alerta, “mesmo tendo qualidade e bom tratamento.” Se lhe pedirmos sugestões, ainda hesita, porventura por medo de melindrar quem fica de fora, mas não precisa de pensar muito para indicar o Bagoeira e o Galliano, ambos no centro da cidade, como “os mais emblemáticos”.

Ao nível dos vinhos, um dos emblemas da quinta é o tinto de vinhão que em Maio venceu a medalha de ouro na categoria de tintos do Concurso da Região Demarcada dos Vinhos Verdes. Um tinto frutado e de tanino marcado, porém sem arestas vivas, que vem à conversa a propósito das ligações felizes que dá com “tudo o que é pratos minhotos”, segundo afiança José Miranda, destacando desse lote o incontornável galo.

Foto
Na Quinta de Balão salta à vista o espigueiro encimado por um galo-catavento. Ou não estivéssemos na casa de um membro da Confraria Gastronómica O Galo de Barcelos. Maria João Gala
Foto
José Miranda, enólogo e dono da Quinta de Balão (em Moure, Barcelos), faz-se acompanhar dos filhos, José e Pedro, que são a terceira geração da família ligada à propriedade. Maria João Gala

O hectare de vinha que lhe dá berço tem já 25 anos, feliz fruto da teimosia de José e do seu pai – que comprou a quinta em 1974 –, quando adaptaram a Quinta de Balão para a produção de vinho. Mantiveram-se fiéis às castas com maior expressão na região, sobretudo o loureiro, para José “a casta que transmite mais o que é o Vinho Verde típico”, correspondente a cerca de 7 dos 12 hectares de vinha, e o alvarinho, que entrou no portefólio a pedido de um cliente brasileiro e ocupa hoje 4 hectares. O resto são áreas residuais de borraçal, espadeiro, sauvignon blanc e arinto.

A prova decorre na varanda da casa quinhentista da quinta, um patamar amplo de granito voltado para as vinhas e com um grande espigueiro em grande plano – encimado, outra coisa não podia ser, por um galo-catavento. José Miranda faz-se acompanhar dos seus dois filhos, José e Pedro, nenhum deles dedicado ao mundo dos vinhos, para já – formaram-se em ciências farmacêuticas e engenharia de gestão industrial, respectivamente –, mas nenhum dos dois parece enjeitar a continuidade do negócio de família. Afinal, cresceram neste ambiente, nesta casa, e, curiosidade porventura premonitória, foi na vindima que Pedro disse a sua primeira frase, “Ena, tanta uva!”. Há que dar tempo ao tempo, portanto.

Para apresentar os vinhos, José Miranda foca-se na feliz localização da quinta, no vale do rio Covo, que beneficia da influência do Cávado e “acaba por ter um terroir próprio”, marcado pelos solos graníticos, calor suficiente para “garantir maturações perfeitas” e humidade, que “mantém a frescura”. Não é mero acaso que entre os vizinhos da Quinta de Balão se encontrem a Quinta de Paços e a Quinta do Tamariz, dois produtores históricos da região.

Salão do palacete, no hotel boutique Solar de Vila Meã (Barcelos) Maria João Gala
Hotel boutique Solar de Vila Meã (Barcelos) Maria João Gala
Quarto no palacete, no hotel boutique Solar de Vila Meã (Barcelos) Maria João Gala
Fotogaleria
Salão do palacete, no hotel boutique Solar de Vila Meã (Barcelos) Maria João Gala

Dar foco ao artesanato

As uvas do Solar de Vila Meã crescem nesse mesmo vale, não muito longe dali. São apenas 4 quilómetros até aos portões da propriedade, pela estrada que nos leva de volta ao palacete com que Carla Rolanda passou boa parte da vida a sonhar.

Mas agora o encontro acontece uns patamares mais acima, no bar do hotel, que ocupa, junto com o restaurante Barro, o piso superior do edifício que aproveita as antigas dependências agrícolas e a casa dos caseiros, no topo da propriedade. Se no solar a decoração condiz com a vocação senhorial da casa, nesta ala há mais desprendimento, sem abrir mão da sobriedade ou da elegância. “Quisemos dar foco ao artesanato – o figurado, a cestaria e, sobretudo, o barro”, explica Carla Rolanda. “Estamos em Barcelos!”

Em matéria de alojamento, a somar aos sete quartos do palacete, este edifício dispõe de 16 quartos e seis apartamentos duplex, todos virados a nascente e com janelas de cima a baixo, parede a parede, para que não se perca a poesia das primeiras horas de sol (mas os menos dados a lirismos matinais podem descansar, há telas de oclusão total).

Foto
Após décadas de abandono, o Solar de Vila Meã, de início do século XX, abriu as portas como hotel boutique em Junho deste ano. Maria João Gala

Prioridade ao vinho

Os vinhos da casa aguardam ainda luz verde por questões de rotulagem, mas são já crescidos e prontos a dar-se a conhecer. Antes do restauro do solar ou da construção da ala onde estão as áreas sociais do hotel, foi mesmo pelas vinhas que começou a recuperação da propriedade, que priorizou os trabalhos de desmatação, movimentação de terras e plantação de vinha.

Privilegiaram primeiro o alvarinho e o loureiro, “o grande embaixador da região” para o enólogo António Sousa, a par de uma pequena produção de fernão pires, para equilibrar blends, e outra de vinhão, bem como pequenas quantidades de códega de larinho, sauvignon blanc, chardonnay, arinto e padeiro, para vinificações de teste.

Os bons resultados ditaram a ampliação da área das duas últimas. O arinto pela necessidade de ter uma casta mais fresca, e o padeiro pelo rosé convidativo que originou. No momento de pôr os vinhos à prova, é esse mesmo rosé que se destaca, tanto no modo de prova propriamente dita, comentada pelo enólogo, como no comportamento à mesa, no restaurante Barro.

Pedro Dias é quem comanda a cozinha do restaurante Barro, no Solar de Vila Meã (Barcelos). Maria João Gala
O robalo, risotto de camarão, espuma de queijo e clorofila de coentros do restaurante Barro é um daqueles pratos que enchem a alma. Maria João Gala
A tarte de queijo basca com creme de marmelo, além de deliciosa, tem óptima cumplicidade com o rosé de padeiro produzido no Solar de Vila Meã. Maria João Gala
Fotogaleria
Pedro Dias é quem comanda a cozinha do restaurante Barro, no Solar de Vila Meã (Barcelos). Maria João Gala

Pedro Dias é quem comanda a cozinha do primeiro restaurante do Solar de Vila Meã – há um segundo planeado, num formato mais aproximado de “mesa do chef”, mas ainda sem abertura anunciada. A carta, herdada do chef que lá estava antes, situa-se no cruzamento entre a culinária regional e a cozinha criativa.

Homem da terra que é, Pedro Dias pretende pô-la mais ao seu jeito, “pôr mais Minho, com o toque autoral”, mas anda a estudar a margem de manobra com cautela cirúrgica. Isto porque, apesar dos “poucos meses que o restaurante leva, há já favoritos” e clientes fiéis “que vêm com regularidade, das redondezas”.

É exemplo o lombo de novilho, batata rústica e molho de vinho do Porto. Tal como o robalo, risotto de camarão, espuma de queijo e clorofila de coentros, um daqueles pratos que enchem a alma e pedem atenção a cada pormenor que compõe o todo. Ou, no elenco de entradas, o camarão salteado ao alho, que esconde na simplicidade aparente da descrição uma preparação que lhe garante textura firme, suculência, elementos crocantes e gosto apurado. E, verdade seja dita, a tarte de queijo basca com creme de marmelo – que, ainda por cima, é cúmplice do tal rosé de padeiro – também será difícil de substituir.

Como em tantas outras coisas, importa avançar sem pressas – ou, como diz o povo, “dar tempo ao tempo”. Coisa que Carla Rolanda entenderá como poucos.


Este artigo foi publicado na edição n.º 13 da revista Singular.
Para saber mais sobre a política de conteúdos apoiados do PÚBLICO, clique aqui.

Sugerir correcção
Comentar