Meu querido mês de Agosto

“Todos tínhamos conhecidos e familiares emigrados que vinham passar as férias a Portugal e gostávamos de revê-los. Era um Natal fora de época”, escreve a leitora Maria Goreti Catorze.

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Fundão Maria Goreti Catorze
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É quase inquestionável dizer que o Verão é um tempo de memórias. Quando me detenho a soletrar a palavra Agosto volto a sentir a ressonância que a empurra para um passado cheio de dias inesquecíveis.

Era o tempo das férias grandes, quando a canícula suspendia a passagem das horas e não havia nada para fazer. As pessoas podiam ficar a conversar ao fim da tarde, indolentes, encostadas à ombreira duma porta porque a luz do dia nunca mais acabava. Também se chamava a esses momentos "apanhar a fresca" ou "o fresquinho", que não é mais do que sentir a brisa morna que sopra de oeste para o interior, tão escaldante como uma brasa. Dizia-se "hoje está uma brasa". Quem nasceu na Beira Baixa sabe do que estou a falar.

Uma minha amiga que em criança trocou o Fundão por uns dias de férias com a irmã em Álvaro (hoje aldeia turística por causa da praia fluvial no rio Zêzere), escreveu-me um postal onde dizia "o problema aqui são as tardes que custam a passar…". Hoje as tardes voam, ou porque somos adultos ou porque o mundo mudou e perdeu a pacatez do campo e dos dias intermináveis. Mas Agosto era um mês especial, quando regressavam às aldeias de origem os emigrantes que tinham saído para a França nos anos de 1960 ou anteriores.

Os melhores editoriais do Jornal do Fundão falavam do significado desse reencontro. Este ano não houve editorial. Talvez por já não virem emigrantes de primeira ou até de segunda geração ou por terem partido quase todos os que os acolhiam. Para nós, que estávamos aqui todo o ano o mês de Agosto, era uma balbúrdia: demasiada confusão, os preços que subiam, a língua que já não era pura: um francês arranhado e um português deturpado por traduções à la lettre, como montar em vez de subir.

Havia um certo preconceito entre o "nós", que vivíamos cá todo o ano, e "eles", que vinham só no mês de Agosto, traziam bons carros, conheciam os iogurtes bebíveis e faziam subir o preço dos legumes na praça. Suspirávamos por Setembro para voltar às nossas vidas sossegadas. Mas a verdade é que todos tínhamos conhecidos e familiares emigrados que vinham passar as férias a Portugal e gostávamos de revê-los. Era um Natal fora de época. Traziam lembranças simples certamente difíceis de transportar porque atravessavam parte da França e a Espanha toda de carro, sob o calor tórrido da meseta ibérica antes de terem inventado os ares condicionados nas viaturas (eles diziam la voiture).

Quando as aldeias do interior começaram a ficar despovoadas e o campo perdeu aos poucos o cultivo da pequena agricultura, a vinda desses emigrantes passou a ser aguardada com impaciência porque só eles enchiam as ruas de animação. Volto agora a estes tempos no mercado do Fundão, o velho mercado das segundas-feiras neste mês de Agosto, tão quente como não me lembro há muitos anos. Ouço a pronúncia francesa daquelas pessoas que já não conheço mas estão na fila dos velhos gelados Ski, compram camisolas da selecção nacional, onde antes compravam toalhas de praia a dizer Portugal, abeiram-se da banca dos CD que tocam música popular onde nos anos de 1980 e 90 estiveram cassetes de fita magnética aos gritos de "Apita o comboio".

O mercado já não tem pó como antigamente, o chão foi empedrado de granito, que concentra ainda mais o calor. Mas o sítio é o mesmo, com a serra da Estrela ao fundo. As árvores antigas e frondosas foram substituídas por outras tão maltratadas pelas podas e pelo vandalismo avulso que já não fazem sombra como naquele tempo. Quanto às quintas, deram lugar a urbanizações inestéticas. Continua lá a mulher dos chás milagrosos (que já se chamaram sul-africanos), com um megafone estridente, só falta o vendedor de balões.

O mês de Agosto deixou de trazer os que partiram mas traz outros que também falam francês, e com eles memórias e mais memórias de Verões antigos, em tantos queridos meses de Agosto cheios de canções com que entretínhamos as tardes. No meu caso podem ser os Abba, a Sétima Legião ou o Milton Nascimento. Ou as ruas antigas do Fundão, que no meio de tantas mudanças guardam algum lampejo do tempo em que fomos felizes só por sermos jovens e porque ninguém estava morto.

Maria Goreti Catorze

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