Mais uma vez, a (tentativa) de desconstrução da Cidadania

O mais interessante das iniciativas políticas, quando desejam ficar bem na fotografia, é que se tornam mais populistas do que baseadas em factos rigorosos produzidos e debatidos no seio da ciência.

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A liberdade de pensar e de exprimir as suas opiniões e os seus valores. A oportunidade de usufruir de propriedade privada ou de ter acesso à informação jornalística. A possibilidade de votar e de ser eleito. A fruição de uma educação de qualidade e de uma saúde promotora do bem-estar. A salvaguarda dos nossos dados pessoais e dos ecossistemas naturais que nos envolvem a todos. Estes são alguns exemplos daquilo a que qualquer pessoa beneficia enquanto membro de uma colectividade. Como tantos outros elementos do bem comum, estes são atributos e direitos de Cidadania.

Mais uma vez, a questão sobre aquilo que deve ser ou não a disciplina de Cidadania veio à tona, desta vez puxada pelo primeiro-ministro Luís Montenegro, sem que se percebesse a urgência das suas intenções quando comparada com outros problemas que assolam o país de maneira mais intensa e permanente (corrupção, escassez de recursos naturais, insegurança, etc.). Desta feita, foram propostas transformações a esta disciplina que a libertassem das “amarras ideológicas” que a envolvem.

O mais interessante das iniciativas políticas, quando desejam ficar bem na fotografia, é que se tornam mais populistas do que baseadas em factos rigorosos produzidos e debatidos no seio da comunidade científica. Por exemplo, quando questionado sobre que queixas concretas existem dos pais e Encarregados de Educação acerca do que é tratado nesta disciplina, o Ministro da Educação não soube responder com precisão. Suponho que faça sentido um economista não ter dados objectivos para apresentar.

Em simultâneo, defendeu Fernando Alexandre, existem matérias que não são consensuais nas famílias, necessitando as mesmas de serem analisadas e até transformadas. É certo que a cidadania implica uma base comum para a convivência em sociedade, nomeadamente o entendimento de que os direitos de uns são os deveres de outros e vice-versa, numa lógica de respeito partilhado; todavia, essa visão comunitária não obriga nem pode obrigar à anulação de visões alternativas que mereçam ser expostas para melhorarmos as nossas acções individuais e colectivas. O debate sempre integrou a democracia e, por sua vez, também faz parte das práticas cidadãs capacitadas.

A reavaliação do currículo da Cidadania é uma decisão sempre indissociável de uma reconsideração do que é ser cidadão, do perfil que um cidadão deve ter. Neste sentido, e observando os temas que são abordados nesta disciplina, é obrigatório questionarmos: serão os direitos humanos as realidades a exigirem uma alteração? Ou será, talvez, o desenvolvimento sustentável que não é bem trabalhado em sala de aula? Talvez a literacia financeira e a educação para o consumo? Ou a segurança rodoviária? É que são conteúdos como estes, tão importantes para a estabilidade da vida pública (e da vida privada também), que são desenvolvidos na referida disciplina.

Contudo, como sabemos, o problema não está aí: como sempre, está nas questões de sexualidade. É sempre este o mote controverso, como se existisse um medo de a escola destruir a forma de vida heterossexual. Nada mais absurdo do que acreditar que a escola pretende ou está a realizar tal prática quando a orientação sexual é uma predisposição biológica, existente em tantos animais como nós, e que não pode nem nunca poderá ser reconvertida. Mas para o governo, é preferível que continuemos a ter acidentes nas estradas devido ao uso de telemóveis ou ao consumo de álcool, ou que sejamos dos países como menor capacidade de compreensão dos instrumentos financeiros, ou ainda que sejamos tão poucos a reciclar e que a reciclagem se situe em valores tão baixos por muitas vezes lhe faltar eficiência. Tudo isto é preferível a cada um ser livre na exploração e expressão da sua sexualidade.

Para quem se tem debatido por virar a página socialista e por diminuir a imposição do Estado na vida das pessoas, espero que neste momento tenha consciência de que uma revisão da disciplina da Cidadania que oculte ou exclua algumas realidades e beneficie outras – portanto, que transmita a mensagem sobre quem pode ser livre e quem não pode – é uma enorme ingerência estatal no que os cidadãos fazem. É sempre muito fácil não realizar uma autocrítica – e ignorar que, se os outros têm a sua ideologia, nós também temos a nossa.

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