Depois apagou-se o futuro

Nattaya e Kanya têm a mesma idade, entre os seis e os sete anos. As meninas não são irmãs de sangue mas companheiras de rua, sabem ir à luta e retornam sempre a casa com as mãos a abanar de dores.

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Conto: Depois apagou-se o futuro Zero Creatives/ Getty Images
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Como uma bruma definitiva entre os olhos e o mundo, encontraria em si própria a raiz do embaciamento definitivo. Nattaya e Kanya nasceram nos arrabaldes da indiferença, mesmo à beira do desprezo, no centro da violência e da miséria. Quando se nasce assim, órfã de pais vivos, sobrevive-se na rua e cedo se aprende a lançar o isco para pescar a atenção dos adultos.

Nattaya e Kanya têm a mesma idade, entre os seis e os sete anos. As meninas não são irmãs de sangue mas companheiras de rua, sabem ir à luta e retornam sempre a casa com as mãos a abanar de dores. O regresso dá-se com os bolsos cheios de moedas e, em dias excepcionais, uma ou outra nota, que investem em açúcar e futuras cáries. O que fazem para obter lucro ninguém saberá por algum tempo, a não ser as próprias meninas e quem lhes remunera o serviço.

Nunca mendigaram. Aos seis anos, desprezam já a actividade dos pedinchas.

Quando forem descobertas pelos pais, Kanya receberá uma tareia que lhe irá moer ainda mais os ossos e Nattaya não será punida a tempo pelos progenitores. A ira dos pais não se vai dirigir à actividade que faziam em segredo, mas ao facto de não partilharem os lucros.

Há algum tempo que as meninas não sabem como esconder as marcas que o trabalho deixa nelas. Nódoas negras e lesões várias, que sempre justificam com pancadaria de rua. Em rigor, não mentem — dar e levar porrada é uma espécie de destino e ofício que dividem irmãmente. Durante três meses, são protagonistas de uma luta verdadeira, com direito a luvas e a ringue, enquanto uma plateia aposta para saber qual das crianças sairá vencedora. Além dos locais, os turistas também assistem aos combates e dão gorjetas aos meninos e às meninas.

Hoje, Nattaya não chegará a essa parte. Levou muita pancada da sua companheira de luta tornada adversária, a Kanya. Apesar de terem a mesma idade e de serem ambas enfezadas, uma tem mais um milímetro de músculo do que a outra. Antes de a luta terminar, Nattaya tomba inanimada sobre o ringue, depois de um pontapé bem assente na nuca. Kanya não sabe se pode celebrar a vitória que a assistência efusiva anuncia. Faltam dois meses para a derrotada no ringue completar sete anos.

Embora nunca tenha soprado as velas de um bolo de aniversário, Nattaya sonha por segundos que come à dentada um bolo inteiro com dois pisos, como nos filmes americanos, de chocolate e natas e velas a arder com o seu nome escrito. Depois apagou-se o futuro. Como uma bruma definitiva entre os seus olhos e o mundo, encontraria em si própria a raiz do embaciamento definitivo.

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