70 mil homens, um crime: a cultura de partilha de imagens íntimas no digital

A notícia que chocou as redes sociais esta semana foi a descoberta do canal português no Telegram, onde 70 mil homens partilham e visualizam imagens íntimas de mulheres sem o seu consentimento.

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A notícia que chocou as redes sociais esta semana foi a descoberta do canal português no Telegram onde 70 mil homens partilham e visualizam imagens íntimas de mulheres sem o seu consentimento. Isto significa que um em cada 70 homens portugueses fazem parte deste grupo que expõe mulheres.

A primeira vez que ouvi falar de um grupo deste género foi há cerca de cinco anos. Um ex-namorado enviou-me uma mensagem, “preocupado”, porque aparentemente pertencia a um grupo de Whatsapp em que se partilhava conteúdo íntimo, e viu circular um vídeo em que, segundo ele, a rapariga filmada se parecia comigo. Ele enviou-me o vídeo para comprovar a sua teoria, mas as semelhanças eram mesmo muito poucas e a sua preocupação não fundamentada.

Quando vi o vídeo fiquei perplexa porque era evidente que a rapariga em questão não tinha sequer consciência de que estava a ser filmada. Ele reforçou que não se orgulhava e que tinha vergonha de estar no grupo, mas claramente não tinha vergonha suficiente, porque se tivesse não seria um membro. Um dos subgrupos do canal do Telegram tem o nome de “Voyeur” onde são partilhadas fotografias de mulheres que são fotografadas às escondidas, como era o caso desta rapariga. Estas fotografias são partilhadas sem o consentimento das protagonistas.

Nós vivemos numa sociedade de imagem e muitos casais partilham fotografias íntimas no seu núcleo privado. Já ouvi raparigas fazerem comentários em que aconselham o seguinte: “Se enviares nudes, envia sem cara para não seres reconhecida, caso alguém partilhe”.

A questão é que o problema não está na mulher que envia uma fotografia íntima a alguém em quem confia. O problema está no homem sem integridade moral que se acha no direito de partilhar essas imagens com os amigos e, até por vezes, com desconhecidos.

Conheço casos de amigas que foram intimidadas por homens que ameaçaram divulgar as suas fotografias, partilhadas ao longo de uma relação em que supostamente deveria existir respeito e confiança. Seja qual for o tipo de relação, séria ou casual, não há nenhum motivo que justifique a partilha de conteúdos que foram confiados na privacidade. A isto chama-se revenge porn, homens que partilham conteúdos como forma de retaliação. E como tantas vezes acontece, ainda ouvimos comentários que culpabilizam a vítima, tal como: “Se não queria que a imagem andasse espalhada por aí, que não a tivesse enviado.”

Estamos a falar de um só grupo, que conta com 70 mil homens, o que equivale a um estádio de futebol inteiro, mas certamente existirão muitos outros que desconhecemos.

Com a divulgação desta notícia, muita gente dá ênfase ao facto de que nem todos os homens participam nestes grupos como se a preocupação principal fosse não manchar a imagem dos homens. Ainda bem que não, porque se assim fosse a esperança estava mesmo perdida. Ainda assim, estamos a falar de um número completamente absurdo. Não são só os homens que partilham que devem ser responsabilizados, são também todos aqueles que assistem e todos aqueles que sabem da existência destes grupos e não os denunciam.

Quando andamos na escola temos aulas de educação sexual em que falamos de métodos contraceptivos e sobre o perigo das DST. Temos de falar muito mais sobre consentimento, sobre respeito, sobre o direito da privacidade, sobre os perigos da internet e danos psicológicos causados por partilhas indesejadas. Temos mesmo de levantar mais questões e educar, porque a verdade é que aquilo que deveria ser óbvio, pelos vistos, não é para muitos. Se realmente não fazem parte deste grupo de pessoas e não se identificam com a ética destes comportamentos, eduquem os vossos amigos e façam-lhes frente quando virem isto a acontecer.

A cada dia, a privacidade de milhares de mulheres é violada em grupos online, onde imagens íntimas são partilhadas sem consentimento, transformando a vida de muitas num verdadeiro pesadelo.

Já nem sequer faz sentido usar o argumento de que poderiam ser mães ou filhas, porque a verdade é que não é preciso ter uma mãe ou uma filha para se perceber que qualquer pessoa merece ser respeitada e que este tipo de partilha é uma violação da privacidade íntima que causa muitos danos psicológicos. É hora de romper o silêncio, de denunciar, de apoiar as vítimas e de exigir mudanças significativas. A partilha não consentida de conteúdos íntimos é um crime e quem compactua é cúmplice.

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