A partilha de localização está a tornar-nos miseráveis. Temos de dizer “não”

A pressão para participar na partilha de localização está a afectar as nossas relações e, por vezes, a nossa saúde mental. Chegou a altura de recuperar a nossa privacidade nas relações.

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Dizer "não" à partilha de localização pode ser um acto de amor Willie B. Thomas/Getty Images
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Dizer "sim" à partilha da localização com alguém é tão fácil como tocar no ecrã do telemóvel. Dizer "não", no entanto, pode salvar a tua relação. Ou mesmo a tua segurança.

Ashley Wragge, uma jovem de 26 anos do estado de Washington, viu uma amizade acabar mal depois de a partilha de localizações ter ficado fora de controlo, com ambas as partes a verem a localização da outra dezenas de vezes por dia.

"Tive de lhe dizer: 'Não, na verdade não quero saber onde estás e não quero que saibas onde estou'", conta Wragge. "Quero voltar a ser como éramos antes: se quiséssemos saber onde a outra estava, tínhamos de lhe perguntar. "

A partilha de localização é o problema de privacidade que se infiltrou nas nossas vidas enquanto não estávamos a olhar. Enquanto tentámos concíliar vários empregos, fazíamos malabarismos com os compromissos familiares e conduzíamos durante horas todos os dias, a partilha de localização ajudou a manter as coisas unidas. As pessoas confiam cada vez mais em aplicações como Find My Friends, Snapchat ou Life360 para manter o controlo dos seus círculos íntimos — ou mesmo dos seus conhecidos. Afinal, qual é o mal de um pouco de vigilância entre amigos?

Mas tu não darias acesso às tuas mensagens ou ao histórico de pesquisa do Google. E a partilha de localização expõe o mesmo tipo de informação íntima: mostra os teus movimentos diários.

As relações azedam, e a partilha de localização também. Os agressores usam a localização por GPS para controlar as vítimas — um problema que a Apple e outras empresas de tecnologia têm demorado a resolver. A partilha de localização de forma corriqueira também se pode tornar tóxica nas mãos de um amigo exigente, de um pai demasiado envolvido ou de um parceiro inseguro, alertam os utilizadores.

A pressão para participar na partilha de localização está a afectar as nossas relações e, por vezes, a nossa saúde mental. É estranho recusar quando alguém pede a nossa localização. É fácil ultrapassar os limites quando se está a observar todos os movimentos de alguém. E, a toda a hora, aquele pensamento incómodo: não tenho direito a alguma privacidade?

Chegou a altura de recuperar a nossa privacidade nas relações, definindo limites para a partilha de localização ou optando por não aceder.

“Eu só gosto de saber onde está toda a gente”

A partilha de localização é tão comum que dizer "não" pode parecer uma reacção exagerada. Recusar o pedido de localização de alguém é como acusá-lo de ser assustador — ou admitir que tem algo a esconder.

Quando Aidan Walker, de 25 anos, apareceu num bar para sair com um novo amigo do trabalho, estava à espera de cervejas e de uma conversa ligeira. Mas, passados alguns minutos, o amigo pegou no telemóvel e questionou: será que ele poderia ter acesso, indefinidamente, à localização de Walker?

"Ele disse: ‘Oh, não é nada de estranho'", recorda Walker. "Só gosto de saber onde está toda a gente." Abriu a aplicação Find My Friends da Apple para mostrar um conjunto de pontos azuis espalhados pela Virgínia do Norte — e Walker viu mais de 30 localizações, todas referentes a um amigo ou conhecido.

Com medo de ser ofensivo, Walker não sabia bem o que fazer. Por isso, tocou em "partilhar indefinidamente".

As histórias de terror da partilha de locais começam muitas vezes assim, avisa Kelli Owens, directora executiva do Gabinete de Prevenção da Violência Doméstica de Nova Iorque. Concedemos acesso à localização a achar que não é nada de especial, mas não podemos prever como é que uma amizade ou uma relação se vai desenrolar. "Ninguém entra numa relação a pensar que isto vai correr mal ou que esta pessoa vai usar o poder e o controlo sobre mim."

A partilha de localização, bem como outras funcionalidades de localização, são agora um denominador comum em muitos casos de violência doméstica, e ainda se está a descobrir como criar planos de segurança eficazes quando os agressores têm acesso ao rasto digital da vítima, aponta.

Idealmente, a partilha de localização deve ser guardada para relações com uma longa e estável história, defende. Mas, por vezes, até as nossas ligações mais próximas se excedem e a etiqueta para acabar com o acesso à localização não é clara.

Nyiko Rikhotso, professora de 25 anos, sempre partilhou a sua localização com os pais quando estava na faculdade. Mas depois de se formar e voltar para casa no Verão, Rikhotso apercebeu-se de que estava numa situação difícil. Se o seu pequeno ponto azul estivesse num local conhecido, estava tudo bem. Mas no momento em que viajava para um local desconhecido, como a casa de um novo amigo, recebia uma chamada telefónica: com quem é que ela estava e porquê?

Esta exposição constante deixava-a desconfortável. Mas acabar com a partilha de localização pareceu-lhe cruel — talvez os pais estivessem apenas a tentar estabelecer contacto?

"Foi uma conversa desconfortável", relembra Rikhotso. Mas manteve a sua posição. Estavam os três na cozinha quando ela tocou em "parar de partilhar localização".

Como dizer não à partilha de localização

A partilha de localização deve ser uma negociação contínua, não uma parte integrante de amizades ou relações, defende a educadora sexual Justine Ang Fonte.

Fonte, que partilha "guias de limites" no Instagram para ajudar as pessoas a navegar em conversas complicadas, diz que a partilha de localização se tornou tão esperada que muitas pessoas não sabem sequer que podem dizer "não" a este pedido. Os nossos movimentos estão sob a alçada da "autonomia corporal", explica, e, quando somos adultos, ninguém tem direito a saber do nosso paradeiro.

Uma conversa saudável sobre partilha de localização seria assim, segundo Fonte: uma pessoa pede a localização da outra, explicando porque é que a quer. Podem estar preocupados com a segurança, a logística ou a segurança emocional.

Depois, o convidado concede a localização por um período limitado ou sugere uma alternativa menos invasiva. Eis o guião sugerido por Fonte: "Adoro que queiras participar na minha vida porque isso mostra que te preocupas. Penso que posso satisfazer as tuas necessidades de uma forma que também me permita ter a minha independência.”

Talvez um check-in regular por escrito ou um álbum de fotografias partilhado sirva o mesmo propósito, sugere Fonte. O consentimento não é indefinido porque as relações mudam com o tempo, e a sua posição em relação à partilha de localização deve reflectir isso mesmo, acrescenta.

Abrir mão da nossa privacidade em troca de confiança ou conveniência faz parte da vida moderna, do trabalho à escola e à fila de segurança do aeroporto, defende Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School e autora de The Age of Surveillance Capitalism. Mas quando deixamos que uma ferramenta como o Find My Friends comece a gerir as nossas relações, normalizamos essa vigilância também na nossa vida pessoal, diz.

"Ter direito ao refúgio, ter privacidade mesmo quando se partilha outras coisas, são estes os equilíbrios que criam indivíduos e personalidades ricas", defende Zuboff.

Discutir as partes da nossa vida que estamos dispostos a partilhar faz parte da verdadeira intimidade, afirma Zuboff, que se preocupa com o facto de, ao pôr a nu todos os nossos movimentos, estarmos a corroer a nossa capacidade de nos ligarmos e comunicarmos.

"Ao dependermos desta tecnologia, estamos a esvaziar as nossas famílias, as nossas amizades e os nossos romances", afirma. Dizer "não" à partilha de localização pode, então, ser um acto de amor.


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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