História, memória e “heróis”

Heróis de ontem, vilões de hoje, ou apenas personagens convenientes… Os nossos heróis salvaram o mundo, mas de quem? Tal como não nos compete julgar o passado, também não nos cabe glorificá-lo.

Foto
Megafone P3 Unsplash
Ouça este artigo
00:00
04:27

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

A memória é um fenómeno interessante, mas também arriscado. Enquanto um indivíduo recorda momentos através de experiências próprias, as sociedades constroem memórias colectivas que moldam crenças, identidades e narrativas nacionais. Mas a memória não é história e essa diferença é crucial.

A história, enquanto ciência humana, procura compreender o passado metodologicamente através da análise de fontes e evidências, tentando esclarecer determinado evento e a sua complexidade. Já a memória, individual ou colectiva, é selectiva, emotiva e propícia a interesses, servindo para legitimar ideias, acções e até regimes políticos.

Podemos dizer que é um poderoso cimento social, no entanto, vulnerável a deturpações. Aqui, o historiador tem uma responsabilidade: esclarecer essas deturpações, esclarecer que o passado é feito de vários tons de cinzento – não apenas preto ou branco – e dialogar de forma responsável com o público.

Um dos aspectos mais duvidoso da memória colectiva é o papel dos “heróis”. Na narrativa nacionalista, os “heróis” têm um papel fundamental. Enaltecidos como símbolos de virtude e coragem, raramente são representados com as complexidades de qualquer ser humano. Criados, não apenas para celebrar feitos do passado, mas também para moldar ideais do presente e do futuro. O mesmo acontece com a utilização de “nós, portugueses” numa alusão a outros tempos. É um erro anacrónico comum, intencional ou não, de criar uma conexão com um passado “glorioso”, como se fôssemos de uma estirpe rara e excepcional.

Em Portugal, os discursos oficiais oferecem-nos uma série de “heróis” históricos: D. Afonso Henriques, Infante D. Henrique, Vasco da Gama… Cada um deles é apresentado como um ícone de feitos grandiosos — o fundador da nação, o visionário dos Descobrimentos e o navegador que abriu novos mundos. Mas será essa visão imparcial? Será produtiva?

Os “heróis”, como apresentados, são criações políticas e culturais. Os feitos atribuídos a estas figuras costumam ser romantizados ou ampliados, enquanto as falhas e controvérsias são omitidas. Tomemos, como exemplo, o Infante D. Henrique, celebrado como o “Navegador”. É descrito como o arquitecto de uma “era de ouro”, como se tivesse planeado toda a expansão que se desenrolaria nos séculos seguintes. Ou então D. Dinis, que mandou ampliar o pinhal de Leiria já a pensar na madeira necessária para construir as embarcações que o período da expansão exigiria. Como é claro, está fora do alcance humano prever as necessidades dos séculos seguintes, a não ser que acreditemos em profecias fantasiosas.

A questão vai mais além: a existência de “heróis” implica a presença de “vilões”. Este maniqueísmo básico — o bem contra o mal — empobrece a história, ignorando que os acontecimentos do passado são moldados por interesses, contradições e perspectivas. Não há personagens intrinsecamente boas ou más na história; há acções, contextos e consequências.

Os “heróis” servem interesses políticos, culturais ou sociais de quem os promove. Procuram criar um sentimento de orgulho nacional, mas também para justificar políticas de exclusão ou violência. Consideramos o Infante D. Henrique um visionário, contudo, esquecemo-nos das consequências que as expedições marítimas tiveram para os povos africanos. Celebramos Vasco da Gama como “herói” nacional, mas ignoramos os actos de brutalidade que o acompanharam até à Índia. Tal como não nos compete julgar o passado, também não nos cabe glorificá-lo.

A história não deve servir para promover agendas, mas para compreender os enredos do passado e a sua complexidade. Isso inclui dar voz às histórias marginalizadas, reconhecer consequências de determinadas acções e desafiar os mitos das narrativas simplistas. Num mundo polarizado, onde a memória é frequentemente usada como arma política, o historiador tem um papel fulcral.

Para isso, é necessário um diálogo aberto entre a história e a sociedade. Não se trata de destruir mitos heroicos ou apagar memórias que enriquecem a identidade coletiva, mas de promover um conhecimento crítico. D. Afonso Henriques e Vasco da Gama podem continuar a ser figuras centrais da história portuguesa, mas as suas ações devem ser contextualizadas, discutidas e até problematizadas.

O desafio para os historiadores e para a sociedade é conjugar a memória com a história e a celebração com a crítica. Assim, poderemos realmente honrar o passado e promover um entendimento mais justo e inclusivo do mundo que nos precedeu.

Sugerir correcção
Comentar