A Negra Mole é “esquizofrénica”, mas lá que dá grandes vinhos, dá

O Algarve não é só Negra Mole, mas é esta casta que continuará a fazer a revolução numa região adormecida. Só falta a ajuda dos restaurantes e dos consumidores. Este sábado há Fugas Especial Vinhos.

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Em São Bartolomeu de Messines, vinhas na Herdade do Barranco do Vale Miguel Madeira
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A Negra Mole é a segunda casta mais antiga em Portugal (a primeira é a Cerceal), mas é aquela que, de longe, oferece maior diversidade genética, dizem os trabalhos da Associação Para a Diversidade da Videira (Porvid). Estes dois factos, em si, deviam fazer da Negra Mole uma casta popular e apreciada, só que tal está longe de acontecer. Está longe, mas, apesar de tudo, no bom caminho.

Durante a primeira edição do Algarve Wine Session (evento para profissionais que decorreu em Outubro, em Vilamoura), a vontade de provar vinhos de Negra Mole era evidente. Se nem só de Negra Mole vive o Algarve, a verdade é que a casta “esquizofrénica”, nas palavras de Bernardo Cabral, enólogo do projecto Arvad, ressuscitou uma viticultura moribunda e tornou o Algarve numa região de moda para um nicho de mercado que paga o que é justo por um vinho necessariamente mais caro.

Dinis Gonçalves, enólogo do projecto Cabrita Wines, um dos produtores que participou no processo de ressurreição da Negra Mole, diz-nos: “Hoje, quando visitamos um cliente novo, é certo e sabido que ele vai perguntar por vinhos Negra Mole. Há menos de dez anos, nada disso acontecia.”

O regresso da Negra Mole também se deve ao facto de haver procura por vinhos mais leves, frescos, menos alcoólicos, com expressão aromática mais pura e pouco madeirizados, mas com personalidade. Mais, o próprio perfil do vinho ajeita-se a comparações com outras castas estrangeiras famosas (e também outras castas nacionais menos badaladas), pelo que um sommelier pode brilhar com uma variedade que é capaz de dar vinhos tintos, blanc de noir, rosé, espumantes, claretes e palhetes, sendo que, nalgumas adegas, há novas experiências a aguardar o momento ideal de saída. Sim, sim, plasticidade podia ser o nome do meio da casta.

Claro que o quase desaparecimento da Negra Mole ocorreu pelo facto de a mesma dar imensas dores de cabeça ao viticultor e ao enólogo, visto que, num mesmo cacho, bagos com idêntica maturação têm tonalidades cromáticas diferentes. “Eu olho para os cachos pintados de diferentes cores e fico com a sensação de que a casta ou é esquizofrénica ou está a gozar connosco. Pode ser que haja outra casta parecida noutra parte do mundo, mas eu não conheço nada semelhante. E isto até me diverte”, diz-nos Bernardo Cabral, que faz alguns dos mais apreciados Negra Mole da actualidade no projecto Arvad.

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Negra Mole nas vinhas do Morgado do Quintão Rui Gaudencio

Quando quer explicar a um desconhecido o comportamento da casta, o enólogo pega no telemóvel e mostra uma série de nove copos com nove tons cromáticos de vinhos em fermentação e todos de Negra Mole. Para uma mesma casta, a diferença é impressionante. A decisão do enólogo fazer um tinto, um blanc de noir (vinho branco a partir de uvas tintas) ou outro perfil qualquer é tomada em função da avaliação da preponderância cromática com que as uvas se apresentam em cada caixa na entrada da adega, algo que colocaria um enólogo americano ou australiano em estado febril.

Já no Morgado do Quintão as coisas são diferentes. Como aqui se fazem espumantes, blanc de noir, claretes, palhetes e tintos, uma vindima nos 25 hectares de vinhas velhas e de sequeiro implica passar na mesma cepa em três momentos diferentes, consoante a maturação das uvas. Imagine-se a trabalheira e os custos.

Filipe Vasconcellos, administrador do Morgado do Quintão, refere-nos que um dos maiores desafios enquanto produtor é “explicar o ecossistema da viticultura que fazem, em particular os custos de produção inerentes a vinhas velhas com variabilidade genética. Esta variabilidade é uma riqueza, mas cuidar dela não só nos dá imenso trabalho, como nos desafia no discurso de explicação dos vinhos aos consumidores, sejam eles portugueses ou estrangeiros. E é por isso que eu digo que um produtor de vinhos do Algarve – com Negra Mole, mas também com Perrum, Tamarez ou Tinta Miúda – não é apenas um produtor, é também um educador.” Isto foi o que Filipe aprendeu em casa com a mãe, que nunca o deixou arrancar a Negra Mole quando outros produtores optaram por plantar Touriga Nacional, Syrah e Sauvignon Blanc, com o intuito de aproveitar os turistas no Algarve. O argumento da mãe era simples: “Se as castas estão aqui há tantas décadas, por alguma razão há-de ser”.

Convém também ter em conta que se hoje podemos tirar prazer dos diferentes perfis de vinhos Negra Mole isso deve-se a três ou quatro produtores que andaram há vários anos a fazer testes de enologia com a casta, o que significa que os novos produtores que estão a plantar Negra Mole (só não fazem mais porque os viveiristas não acompanham a procura de material para plantar) têm muito trabalho já feito.

E por falar nos novos operadores, Dinis Gonçalves espera que “não haja a tentação de banalizar a casta, no sentido de se produzir vinhos para entrarem na loucura da competição por preço, como já aconteceu noutras regiões com outras castas. Isso seria deitar a perder tudo o que se fez até agora. Se a Negra Mole é a casta bandeira do Algarve, tem de ser tratada como tal”.

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Uma garrafa de Arvad Negra Mole 2021 Ricardo Lopes

A restauração local liga pouco aos vinhos algarvios

Um dos problemas de afirmação dos vinhos algarvios – aqueles que são feitos com castas regionais e menos com castas nacionais ou estrangeiras – é um certo desprezo da restauração e dos grupos hoteleiros instalados no Algarve. E é por isso que a presidente da Comissão Vitivinícola do Algarve do Algarve mais parece uma diplomata em conversações com as escolas hoteleiras e as associações profissionais do turismo algarvio, de forma a que estas últimas sensibilizem os seus associados para a inclusão de vinhos algarvios nas suas cartas – coisa que deveria ser uma evidência. Sara Silva é uma faz-tudo: trata das burocracias clássicas de uma CVR e passa os dias a fazer de directora de marketing dos vinhos algarvios.

Ainda assim, nos restaurantes com sommelier (muito poucos, é certo) tem havido preocupação de trabalhar os vinhos algarvios. E isso, no Algarve, tem um efeito multiplicador na procura por via do enoturismo e, claro, na venda de garrafas à porta da adega, como se o Algarve fosse Bordéus. Dois exemplos: por ano, o Morgado do Quintão, que tem uma programação bastante inteligente, recebe 10 mil turistas. Já no Arvad, só no mês de Outubro, deram-se 980 amostras de vinho a provar. Numa região com 55 agentes económicos (há 15 anos eram 16), metade destes têm operações de enoturismo, o que significa que a facturação na adega acaba por ter um peso importante das contas das empresas.

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Na adega da Arvad Wine Ricardo Lopes

No mais, a diversidade de terroir e a idade de algumas vinhas de famílias com ligação antiga ao vinho escondem histórias interessantes, histórias essas que, no acto de compra, têm tanto valor como o vinho em si. E há detalhes tão pequenos que não deixam de encantar, como os contra-rótulos dos vinhos da Herdade do Barranco Longo (HBL). Entre indicações obrigatórias por lei, há sempre um excerto de uma carta que Ana Matias Chaves escreve todos os anos ao avô que já faleceu – a relatar-lhe as aventuras da vindima de cada colheita. Se uma pessoa já se encanta com os vinhos de vinhas velhas e de sequeiro da HBL, é evidente que com detalhes destes vai comprar pelo menos uma garrafa para a meter à mesa com os amigos e contar a história.

Ok, o Algarve é micro, com os seus 1400 hectares de área cadastrada, 800 de vinha certificada e 1, 5 milhões de garrafas, mas não só tem potencial de crescimento, não só tem a Negra Mole, como contribui para afirmar a diversidade e a riqueza dos vinhos portugueses face aos vinhos de outras regiões. Agora, só falta os consumidores darem uma ajuda. E os restaurantes, claro.

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