“A forma de tornar o outro flexível é tornar-me mais flexível.” Um livro para nos ajudar a dialogar

O psicólogo Nuno Costa escreveu o livro Já não sei o que te diga! O papel do diálogo construtivo no nosso dia-a-dia para ajudar a melhor conversar. Uma dica: esquece os vencedores e vencidos.

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Nuno Costa é o autor do livro Já não sei o que te diga! Daniel Rocha/PUBLICO
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Quem nunca pensou se uma amizade fazia sentido por pensar diferente do outro em quase tudo e, sobretudo, por não conseguir conversar sobre essas diferenças? Foi assim com Nuno Costa, que fez nascer um livro não de uma ideia científica, mas de um “desafio bem real”: as conversas com um amigo estavam a ficar cada vez mais difíceis.

“Começamos a deixar de conversar e a ficar bloqueados na parte de discordar. O tom da conversa ia aumentando, mas a qualidade ia diminuindo”, conta. Ao mesmo tempo que notou isso nesta relação, apercebeu-se que estava rodeado de pessoas que tinham as mesmas dificuldades. “[Tudo isto] Está relacionado com a polarização e as situações desafiantes que temos enfrentado. Mas recusei-me a acreditar que a melhor solução seria acabar com a amizade.”

Começou a pensar e “a olhar para a ciência psicológica como uma possível ferramenta para melhor a qualidade do diálogo” e, por consequência, a qualidade da relação com esse tal amigo. Transformou essas reflexões no livro Já não sei o que te diga! (uma frase que tantas vezes lhe passou pela cabeça durante as suas conversas), à venda no site da Ordem dos Psicólogos.

Mas porque é tão difícil ter um diálogo construtivo? Porque é que subimos o tom de voz, atacamos e ironizamos? Um dos principais problemas é que “tendemos a acreditar que as pessoas que pensam diferente de nós não pensam bem, ou que têm uma intencionalidade má”, começa por explicar o psicólogo. Não é tão linear assim: “Alguém pode pensar uma coisa diferente de nós e preocupar-se tanto como nós com, por exemplo, o bem-estar da comunidade”, defende.

Posto isso, é crucial “redefinir o objectivo da conversa”. Pensar: o que queremos desta conversa? Convencer? Converter? É que, se for alguma destas, talvez estejamos desde logo a criar um impedimento ao diálogo construtivo. “Talvez o essencial seja, no final, estreitar a relação. Não querer propriamente saber se ganhei ou se perdi, mas acabar a conversa e desejar continuá-la noutro dia.” Retirar algo dali e ter vontade de repetir o momento, ao invés daquele sentimento de "nunca mais vou tocar neste assunto com esta pessoa".

O segredo pode estar em olhar para as conversas com a lente de um cientista, em vez de as encarar como uma luta onde há um vencedor e um perdedor.. O conceito de Modo Cientista, criado pelo antropólogo Adam Grant, defende que numa conversa é importante assumir a postura que um cientista assume perante o mundo: “Manter a abertura, a curiosidade, usar o sentido crítico não só direccionado às ideias da outra pessoa, mas também às nossas, porque nós também somos falíveis.”

Para isso, é preciso estarmos um pouco mais à vontade com o erro. Nuno recorda a sua experiência no Alentejo, de onde é. Sempre ouviu que “ou sim ou sopas” — é preciso decidir, é preciso ter “uma opinião muito concreta e bem fundamentada”, de preferência sobre tudo. Mas nem sempre (ou quase nunca, até) é assim: “Existem factos e histórias para todos os gostos. Temos de ter capacidade de arriscar e de irmos ao encontro do desconhecido e tolerarmos essa ambivalência, a de que existe a ideia X, mas que ela pode coexistir com a ideia Y.”

Claro que o mundo em que vivemos actualmente contribui para este desentendimento. As guerras na Ucrânia e em Gaza, a onda da extrema-direita ou uma eleição nos Estados Unidos que dividiu o mundo contribuem para a polarização. E claro que existem linhas vermelhas que não temos de aceitar, como o “despeito pela nossa humanidade” e o sentimento de perigo, que não deve ter lugar num diálogo saudável.

De resto, o facto de existirem ideias diferentes em pólos opostos não é, para o psicólogo, “problemático”. “O problema está em não conseguirmos dialogar sobre estas diferenças.”

Essa dificuldade está até a mudar os nossos hábitos. Nuno Costa aponta estudos que mostram que “estamos a passar menos tempo nas celebrações em família porque é desconfortável discutir com pessoas que discordam da forma como vemos o mundo”. As redes sociais estão também a criar uma bolha que nos entrega mais daquilo que já sabe que gostamos e com o qual concordamos.

E, além de tudo isto, há também a resistência em mudar de opinião, que pode impedir a abertura ao diálogo. Às vezes prendemo-nos a ideias e conceitos que já aceitamos como correctos e somos incapazes de olhar para eles de outra forma. É como se mudar de opinião fosse sinal de fraqueza de espírito. “Mas se continuássemos a fazer ciência como há 100 anos e nos recusássemos a mudar porque isso significava que não tínhamos espinha dorsal, isto ia dar para o torto, não é?”, ri o psicólogo. O desenvolvimento não acontecia “se achássemos que a mudança era falta de carácter”.

A própria questão dos valores é “é muito discutível”: “Eu posso, imaginemos, ser a favor da morte medicamente assistida e outra pessoa ser contra – e ambos partilharmos o valor da dignidade humana, apenas de formas diferentes. Portanto, é importante termos os nossos valores, sim, mas também é importante perceber quais são os valores das outras pessoas, até para percebermos quais são as nossas identidades partilhadas.”

Dicas para o Natal

Mas e quando não queremos mesmo conversar? Com o Natal aí, podemos estar já antecipar conversas chatas sobre temas fracturantes. Até deves já estar a imaginar quem vai puxar o tema ou fazer uma provocação. E se é verdade que “não é possível dialogarmos a todo o momento sobre todas as temáticas, em todos os contextos e com todas as pessoas”, a mesa de Natal pode ser um sítio especialmente difícil.

Às vezes, pode ser mesmo necessário retirarmo-nos da conversa. Caso seja essa a vontade, dizer algo como “não me apetece falar sobre isso hoje” é legítimo. Se, por outro lado, acharmos que vale a pena, podemos “convidar a outra pessoa para a dança do diálogo”.

Essa dança implica que temos de sair “desta coisa de atirar factos e argumentos à outra pessoa”, e convidá-la a despir também a sua armadura”. A outra pessoa só nos vai querer contar a sua história, a que sustenta as suas crenças, e ouvir a nossa, se se sentir “respeitada e escutada”. “A forma de tornar o outro flexível é tornar-me mais flexível.”

Podemos também procurar uma parte do argumento do outro com o qual concordemos, e começar a partir daí para mostrar a nossa perspectiva. Usar fórmulas como “o que achas sobre isto?” faz-nos sair do monólogo e ajuda-nos a entrar no diálogo. Importa também “evitar linguagem polarizadora”: usar termos como “woke” ou “fascista” não levarão certamente a um entendimento.

Voltando às redes sociais, elas podem ser contrariadas e usadas para distribuição de conteúdo diversificado. Porque não seguir pessoas com as quais não concordamos, mas que acreditamos que "trazem conteúdos válidos para a discussão"? Isso pode ajudar-nos a tornar-nos mais permeáveis às opiniões diferentes da nossa.

Por último, é crucial ter atenção às “identidades partilhadas”. O que significa focar no que nos une, em detrimento de insistirmos no que nos separa. “Se calhar discordo com alguém sobre o que devemos fazer em relação às alterações climáticas, mas descubro que essa pessoa gosta de gatos, ouve Céline Dion e concorda que é necessário combater a pobreza. Isto não só torna o outro menos aterrorizador, como o humaniza.”

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