O terror na ordem do dia

Todos os dias, ao acordar, deparamo-nos com uma nova peripécia política da extrema-direita, que nos ocupa o debate. É um ciclo interminável que institucionaliza e amplia o discurso autoritário.

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Durante o ano de 1793, em plena Revolução Francesa, a população parisiense invadia o parlamento, clamando que o “Terror” fosse posto “na ordem do dia”, projectando o seu receio relativamente à guerra e à contra-revolução. A reivindicação da condenação à guilhotina de todos os suspeitos inimigos da Revolução capturava, assim, a agenda parlamentar, forçando o poder a agir em reacção às exigências populares, de modo adaptar-se a elas, entre cedências e combates para os quais não estava preparado. É certo que a política revolucionária do Terror jacobino tem contornos práticos e ideológicos que em nada se assemelham com os episódios que temos vindo a observar na esfera mediático-parlamentar dos últimos meses, mas não deixa de ser oportuno compará-los sob a lente da sua apropriação por interesses partidários, em especial da extrema-direita.

Por toda a Europa e pelo mundo, a vaga de partidos e movimentos da direita radical que progressivamente impõem a sua agenda nas instituições de que se assenhoram fazem-no com o auxílio de um poderoso trunfo — o controlo do debate político. Não falo de um controlo necessariamente imposto ou repressivo (embora o haja), mas sim de um apoderamento dos temas em discussão.

Em parte por meio de um populismo conspirativo atraente, a par de uma meticulosa exploração dos problemas do quotidiano a que o sistema democrático soçobra em resposta, a extrema-direita revela-se capaz de colocar as suas objecções e soluções “na ordem do dia”, de tão ultrajantes que se apresentam, levando a que o debate sobre um determinado tema seja condicionado, necessariamente envolto nas visões radicais que defende. Enquanto que os sans-culottes da cidade de Paris pretendiam que a guilhotina e a fome se transformassem no centro do debate, a direita radical fá-lo com a pena de morte, a imigração, guerras culturais e quaisquer outros temas que consiga tornar fracturantes, garantindo a atenção mediática que almeja — que, num momento como aquele que vivemos, rapidamente se torna parte da agenda parlamentar, conspurcando o debate.

Acrescidamente à apropriação que faz do espaço de debate público, a extrema-direita acrescenta-lhe o alarmismo e, por vezes, a fatalidade – um dos mais velhos truques deste espaço político, de tiques fascizantes que remontam ao início do século passado –, que se configura como factor crucial não só para a força mediática da polémica mas, sobretudo, da sua discussão forçada em todos os sectores ideológicos. O carácter desassossegado​ da desinformação e polarização vinda da direita radical provoca, inequivocamente, uma reacção dos agentes políticos que a dizem combater, com vista a demarcarem-se das posições frequentemente hediondas que a primeira transmite.

Em Portugal, seja por meio de vandalismo político na Assembleia da República ou de manifestações com a presença de grupos neonazis, o Chega de André Ventura consegue, invariavelmente, captar a atenção da comunicação social, dirigindo o debate e os termos em que são feitos. No parlamento, onde as suas palavras odiosas se tornam na realidade dos portugueses, as abordagens da sua descredibilização institucional têm-se revelado infrutíferas: a contenção de Santos Silva e o caminho para a vitimização que a mesma abriu deu azo à passividade de Aguiar-Branco, que hoje vemos que apenas deixou a bancada parlamentar com o maior número de acusações criminosas entre os seus membros mais à vontade para fazer o que melhor faz — violar a integridade pública pela qual clamam, salvaguardando-se na sua imunidade parlamentar.

Do ponto de vista partidário, o combate ao discurso ofensivo intensifica-se, ofuscando as soluções reais para o país que as várias forças políticas têm a oferecer. Os partidos tornam-se, aos olhos de muitos, em meras figuras de reacção.

Termino a minha reflexão com uma questão para todas e todos os democratas: como podemos dominar esta força dominadora, que se faz usar da própria democracia para a corromper? Qualquer que seja a resposta, tenho uma certeza — que esta tem que ser fruto da união contra o autoritarismo. É hora de, colectivamente, reclamarmos o espaço público para o debate das medidas que realmente importam, ao invés de tarjas e insultos em São Bento. Se assim não for, não passaremos de revolucionários ultrapassados e rendidos à política da guilhotina, à qual, sem oferecer resposta alternativa, provavelmente iremos dar.

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