Menos nuvens a baixas altitudes explicam mistério do recorde de calor de 2023, diz estudo

Investigação identificou diminuição do albedo da Terra que explica calor de 2023: há menos nuvens de baixa altitude e menos luz solar a ser reflectida. Descoberta pode ter impacto nas metas do clima.

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Ainda não se sabe qual é a razão da diminuição das nuvens de baixa altitude no planeta NOAA
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O recorde da temperatura média global de 2023 deixou muitos cientistas surpreendidos. Apesar de um ano com um El Niño forte e a maior concentração de gases com efeito de estufa desde que há registo, os 1,48 graus Celsius acima dos valores médios da época pré-industrial que se sentiram no ano passado foram para lá das expectativas dos cientistas. Mesmo contando com factores como a diminuição das partículas lançadas pelos navios, havia 0,2 graus de aumento de temperatura por explicar.

Agora, uma equipa de cientistas descobriu que aquela diferença pode ser explicada pela diminuição da quantidade de nuvens de baixa altitude. Tal como o gelo existente nos pólos, também as nuvens entram na contabilização do albedo do planeta: a capacidade de reflectir a luz solar que a cor branca faz com tanta eficácia. Quanto mais nuvens, mais luz solar é reflectida e não se acumula no planeta sob a forma de calor. Ao diminuir a quantidade de nuvens nos últimos anos, a Terra tem absorvido mais calor.

A descoberta, publicada nesta quinta-feira na revista Science, poderá obrigar a uma queda mais rápida das emissões de gases com efeito de estufa para se atingir os objectivos climáticos do Acordo de Paris.

“Se o declínio das nuvens de baixa altitude não for causado pela variabilidade interna – algo que é difícil de excluir completamente, mas que parece improvável – então talvez tenhamos pela frente um forte aquecimento no futuro, de acordo com os cenários de emissões futuras”, avisa Helge F. Goessling, do Instituto Alfred Wegener, em Bremerhaven, na Alemanha, ao PÚBLICO. O investigador é o primeiro autor do artigo, juntamente com Thomas Jung, do mesmo instituto, e Thomas Rackow, do Centro Europeu de Previsão Meteorológica a Médio Prazo (CEPMMP), em Bona, também na Alemanha.

Meteorologia histórica

A equipa iniciou a pesquisa após as temperaturas surpreendentes de 2023 “que foram 0,2 graus Celsius acima do esperado”, adianta Helge F. Goessling. Para isso, foram analisar a radiação reflectida pelo planeta a partir dos dados da missão Terra, um satélite da NASA lançado em 1999, que conta com instrumentos que medem aquela radiação.

Além disso, usaram a informação do CEPMMP. Este centro tem como grande objectivo fazer previsões meteorológicas. Neste contexto, faz reanálise climática: usando dados meteorológicos históricos e modelos computacionais avançados, recria as condições meteorológicas das últimas décadas do planeta. Para este estudo, a equipa usou o ERA5, os dados de reanálise mais recentes produzidos pelo CEPMMP.

Desta forma, “o albedo planetário pode ser inferido”, adianta o investigador. Tanto os dados da Terra, como os da ERA5, mostram uma diminuição da cobertura total de nuvens. “No entanto, o ERA5 também permite analisar com é que as nuvens a diferentes altitudes estão a comportar-se. A partir da informação do ERA5 torna-se claro que o declínio é maioritariamente causado pelas nuvens que estão a baixa altitude”, explica Helge F. Goessling. Estas nuvens situam-se até aos três quilómetros de altitude.

Desde 1970 que o albedo da Terra tem vindo a diminuir. Parte dessa diminuição é justificada pela redução das áreas de gelo, primeiro no Árctico e mais recentemente na Antárctida. Mas, segundo as contas da equipa, aquela diminuição é responsável por apenas 15% da diminuição mais recente de albedo. O resto será das nuvens. Usando modelos climáticos e modelos que calculam a quantidade de energia que a Terra recebe e a que emite, a equipa descobriu que “sem a redução do albedo desde Dezembro de 2020, a temperatura média em 2023 teria sido aproximadamente 0,23 graus Celsius mais baixa”, lê-se no comunicado do Instituto Alfred Wegener.

Nem todas as regiões do planeta foram afectadas da mesma forma, já que as condições geográficas, como a existência de continentes, influenciam as dinâmicas da atmosfera e da circulação dos oceanos. Os trópicos e as latitudes a norte dos trópicos sofreram mais alterações, como o Leste do Atlântico Norte. “É muito visível que o Leste do Atlântico Norte, que é um dos principais motores do mais recente salto da temperatura média global, foi caracterizado por um declínio substancial das nuvens a baixa altitude não apenas em 2023, mas também nos últimos dez anos, adiantou Helge F. Goessling.

Emaranhado de causas

A questão que os cientistas ainda não conseguem responder é sobre a causa da diminuição de nuvens e, consequentemente, se este fenómeno é de curto prazo ou se é uma tendência que vai continuar, com consequências para o clima. “Estamos a sugerir três categorias de mecanismos relacionados [à formação das nuvens]: efeitos indirectos dos aerossóis, um feedback positivo do aquecimento nas nuvens de baixa altitude ou a variabilidade interna”, enumera Helge F. Goessling.

A primeira categoria está relacionada com o facto de os navios estarem a emitir menos partículas poluentes, por uma questão de legislação, que se tornou mais forte recentemente. Estas partículas funcionam como núcleos de condensação de nuvens, tornando as nuvens mais luminosas e duradouras. Havendo menos partículas, haverá menos nuvens e menos albedo. A segunda categoria estará ligada ao aquecimento global, “isto significa que o aquecimento por si faz desaparecer parte das nuvens de baixa altitude, o que por sua vez amplifica mais o aquecimento”, diz o investigador. A terceira categoria está relacionada com a variabilidade interna que existe nos oceanos, onde existem ciclos a escalas de tempo de dez anos ou de décadas. Nesse caso, estaríamos numa fase em que há menos nuvens de baixa altitude.

“Estes três mecanismos são muito difíceis de se desemaranhar entre si, por isso não sabemos quantificar qual deles contribui mais [para a menor quantidade de nuvens de baixa altitude]”, adianta Helge F. Goessling, que defende que as temperaturas de 2024 – que muito provavelmente vão bater o recorde de 2023 – também estão a ser influenciadas por aquele fenómeno.

O investigador não consegue ter 100% de certeza se este fenómeno vai continuar no futuro. “Mas é provável”, diz. Se assim for, isso significa que as temperaturas médias anuais vão continuar a ser mais altas do que o esperado. Nesse caso, será necessário reavaliar as metas de diminuição das emissões de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono.

“Os restantes orçamentos de carbono compatíveis com determinados objectivos máximos de aquecimento global poderão ter de ser ajustados para baixo”, defende o especialista, ou seja, a redução teria de ser feita mais rapidamente. “Isso significaria também que as medidas de adaptação para fazer face ao aquecimento do clima, incluindo fenómenos extremos mais frequentes e intensos, se tornariam ainda mais urgentes.”