Eduardo Sá: “Os livros fazem mal às crianças”

A frase provocatória do psicólogo foi dita na entrega do Prémio de Literatura Infantil Pingo Doce. Quem ganhou foi Catarina Fonseca e Mané Peixoto, com o título Eu e o Segredo do Faraó.

Foto
Eduardo Sá, Regina Duarte, Joana Laranjeiro, Rita Costa e Filipa Pimentel, no Grémio Literário de Lisboa, num debate sobre o papel da leitura no desenvolvimento das crianças DR
Ouça este artigo
00:00
10:15

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

O papel da leitura no desenvolvimento das crianças foi tema de debate, nesta semana, no Grémio Literário de Lisboa, integrado na cerimónia de lançamento do livro vencedor da 11.ª edição do Prémio de Literatura Infantil Pingo Doce, Eu e o Segredo do Faraó.

Catarina Fonseca (autora do texto) e Mané Peixoto (ilustradora) receberam um cheque de 25 mil euros cada uma. O maior prémio de literatura infantil do país e que passou agora a distinguir, exclusivamente, trabalhos originais e inéditos de autores e ilustradores que já tenham obra publicada em livro.

“O que é que os livros fazem à cabeça das crianças?”, perguntou ao psicólogo Eduardo Sá a moderadora do debate, Rita Costa, jornalista que coordena o programa TSF Pais e Filhos. “Eu acho que os livros fazem mal às crianças”, disse, provocador e com ironia, acrescentando: “Porque as obrigam a parar e a pensar. São amigos do silêncio, dão-lhes a capacidade de estar sós. Algo que já quase ninguém sabe fazer.”

Falou ainda numa “revolução tranquila”, referindo-se à prática de os pais (“mais as mães”) lerem histórias aos filhos antes de adormecerem. Mas não acredita que as histórias sirvam para dormir, antes “para acordar”, assim como que as palavras são o algoritmo mais simples e mais fácil que nós utilizamos todos os dias”.

Lembra que “o nosso sistema nervoso pensa criando e recombinando imagens e, portanto, a linguagem do sistema nervoso é a imaginação, nós até contamos histórias sem querer”. Os livros e as histórias contribuem para essa agilidade de pensamento e ampliação imaginativa.

O psicólogo e psicanalista tem uma preocupação: “Estamos a criar a geração que brinca mais com as palavras, que está mais capacitada para pensar do que qualquer outra e depois estragamo-la, todos os dias, em suaves prestações… Ao mesmo tempo que estamos a criar uma torre de Babel, estamos a criar peixinhos vermelhos. Tudo em um.”

Explicação: o peixinho vermelho tem uma capacidade máxima de atenção de oito segundos, as crianças, quando crescem presas a ecrãs, têm uma capacidade de atenção de nove segundos. “E acho que nós não estamos a medir as consequências”, concluiu.

Mais adiante, diria: “Os livros servem para ter a cabeça na Lua e os pés na Terra. Tenho medo de que as emoções e os afectos ganhem má fama. Uma emoção é um exercício tão cognitivo como outro qualquer.” Para Eduardo Sá, “os livros são uma gramática e um dicionário fabulosos para aprendermos a pensar”.

Recorda números divulgados pela APEL e relaciona-os com outros de natureza diferente: “Nós, portugueses, consumimos 13 milhões de livros por ano e consumimos 20 de milhões de embalagens de psicofármacos.” E tem uma teoria, “se lessem mais, arrumassem a cabeça e aprendessem a pensar, como os livros ajudam a fazer, porventura, não se sentiriam tão desencontrados e a pôr pó-de-arroz nas coisas que se encontram desarrumadas”. Sugere então: “Um livro em vez de várias embalagens de comprimidos.”

Foto
Os jurados das duas categorias do prémio (texto e ilustração) estiveram presentes na cerimónia no Grémio Literário de Lisboa DR

Desfazer equívocos entre família e escola

Na conversa que antecedeu uma breve encenação do texto do livro premiado, participaram também Regina Duarte, comissária do Plano Nacional de Leitura (PNL); Joana Laranjeiro, especialista em educação parental, e Filipa Pimentel, directora de desenvolvimento sustentável e impacto local do Pingo Doce.

A Regina Duarte coube responder às perguntas: “Como é que podemos aproximar as crianças da leitura? O que é que as escolas podem fazer para que a aprendizagem da leitura tenha impacto e vá além dos conteúdos programáticos?”

Assertiva, a comissária do PNL começou por desfazer alguns equívocos e clarificar os diferentes papéis da família e da escola. “O papel da família em relação à leitura é ler com as crianças, é criar momentos de silêncio, de paz, de tranquilidade, de conforto. Ler com prazer, mais nada. Não é ensinar a ler, não é fazer fichas de leitura com as crianças. Isso faz-se na escola”, afirmou.

Para Regina Duarte, os papéis bem definidos contribuem para os pais “se sentirem, por um lado, em posse do poder que realmente têm, que é muito, e, por outro, livres desta carga, da responsabilidade de ensinar, que é da escola”, repetiu.

Aconselhou ainda os pais a escolher livros de literatura infantil de grande qualidade para lerem em conjunto com as crianças. “Não são livros para ensinar a lavar os dentes ou outras coisas dessas.” E justificou: “Porque é essa literatura infantil de grande qualidade que cria uma relação com as crianças e que as torna leitoras.”

Quando tal não acontece nos primeiros anos de vida, “a escola depois demora anos de trabalho intensivo, se o conseguir fazer, para recuperar o desenvolvimento cognitivo dessas crianças”, que entram no ensino com um défice enorme de vocabulário.

Já sobre a escola, a comissária do Plano Nacional de Leitura lembrou que está muito pressionada para os resultados, em particular para os dos exames. E quer desfazer outro equívoco: “Trabalhar a compreensão da leitura é diferente de trabalhar a leitura autónoma e a leitura por prazer. Nós queremos leitores autónomos, são eles que têm uma relação com os livros para a vida.”

Segundo Regina Duarte, estes leitores autónomos, que têm espírito crítico e prazer de ler, não se formam com a análise crítica da leitura. “E muito do que a escola faz é um trabalho de análise, com um grande aparato teórico e linguístico acerca da literatura.”

Admite que estas práticas melhoram as compreensões da leitura, que são também uma tarefa da escola, mas não deixam tempo para a leitura autónoma. “Há uma leitura que possibilita que o leitor crie uma relação própria com o texto e é feita com maior liberdade. Não são os autores obrigatórios, são os que os alunos aprendem a escolher. As personagens com quem se cria uma relação e que ficam connosco a vida inteira.”

Deixar recados na mochila

Joana Laranjeiro deu alguns exemplos de como em família vai promovendo o gosto pelas palavras e pelos livros. O habitual “contar histórias” ao filho e “dar o exemplo”, para que ele a veja a ler.

Sugere ainda “deixar recados na mochila” dos miúdos, para que eles vão aprendendo a ler e a gostar de escrever. Mas não vale corrigir. “Se eles nos devolvem com uma resposta, não podemos pôr-nos a dizer: ‘Pois, mas ali não era a letra erre.’ Isso quebra. É dar espaço para o que eles estão a mostrar, a descobrir e acolher a pessoa que eles são”, diz a especialista em educação parental.

Dar-lhes tempo é outra das suas indicações: “Se eles não gostam de ler agora, podem gostar de ler depois. Cada pessoa tem o seu tempo de se apaixonar pelos livros.” E acredita que a motivação de ler deve ser interior. “Se a motivação é exterior, quando ela desaparece, não há nada. Quando é interior, ela acompanha-nos para o resto da vida.”

Democratizar a leitura

O que é que uma empresa de distribuição tem que ver com isto? Filipa Pimentel, do Pingo Doce, responde. “De facto, não é óbvio, assim de repente, que um grande retalhista alimentar levante a mão a dizer que também tem aqui um papel a fazer e que pode ajudar nesta missão da leitura”, responde a directora do desenvolvimento sustentável e impacto local da marca.

“Acreditamos que incentivar a leitura desde cedo é essencial para o desenvolvimento pleno das crianças. Como tal, promovemos a literatura infanto-juvenil e tornamos acessíveis histórias que encantam e enriquecem a vida das crianças", acrescenta, dando conta de que estão em mais de 450 lojas, em todo o país, em todas as regiões, incluindo ilhas. Recebem, diariamente, mais de 700 mil clientes/famílias.

Foto
Capa do livro vencedor da 11.ª edição, escolhido entre mais de 1600 candidaturas, repartidas pelas categorias de texto e ilustração DR

Nós temos a consciência de que, em muitas localidades, o nosso espaço de livraria é a livraria local. É onde se compra livros naquela localidade, naquela vila, naquela cidade”, descreve Filipa Pimentel, lembrando que o preço é simbólico (3,99€) e pretende democratizar e alargar o acesso dos consumidores aos livros. Para que nada “impeça um pai ou uma mãe, ou uns avós de comprarem um livro para oferecer aos filhos ou aos netos, em vez de lhes dar um chocolate ou um chupa-chupa”.

Em dez anos, 550 mil euros

A 11.ª primeira edição do prémio ultrapassou as 1600 candidaturas, repartidas pelas categorias de texto e ilustração. As dez obras já distinguidas traduziram-se, até agora, em mais de 180 mil exemplares editados, em parceria com a Livros Horizonte. No total de todas as edições, o retalhista distribuiu pelos vários vencedores um total de 550 mil euros.

Catarina Fonseca, que ganhou na categoria de texto deste ano, disse na cerimónia: “Não gosto de pregar moral nem de escrever coisas fofinhas.” Afirmou ainda que criou esta história para fazer rir as crianças e que ficou satisfeita por o júri ter percebido isso: “Num mundo tão cheio de guerras, conflitos e escuridão, discussões e em que as pessoas vivem à pressa, [os jurados] perceberam a necessidade de alegria nos miúdos.”

Também quis transmitir aos miúdos que “podemos ter aquilo que quisermos se lutarmos por isso e se soubermos fazer as coisas”.

Foto
A autora Catarina Fonseca (à esq.) e a ilustradora Mané Peixoto (à dir.) apresentadas pela jurada especialista em livro infantil Dora Batalim Sottomayor DR

O dinheiro ganho é bem-vindo, disse ao PÚBLICO, para mais numa altura em que não sabe o que lhe vai acontecer a nível profissional. É jornalista na revista Activa, do grupo Trust In News, declarada insolvente nesse mesmo dia.

No momento em que Catarina Fonseca dava autógrafos no Grémio Literário de Lisboa, ali perto, no Largo de Camões, os colegas manifestavam-se para denunciar a crise na empresa.

O júri que avaliou os textos a concurso foi composto pelo escritor Álvaro Magalhães, Mafalda Milhões, Dora Batalim Sottomayor, Regina Duarte e Filipa Pimentel.

Foto
Uma das ilustrações do miolo do livro Eu e o Segredo do Faraó Mané Peixoto

Mané Peixoto, que venceu o prémio na categoria de ilustração, ficou contente por os nomes de ambas terem o mesmo peso na capa do livro. “A ilustração tem esse papel de acrescentar a história e o percurso do leitor também se faz pela imagem. Começamos a desenhar as letras antes de escrever”, disse a designer de 30 anos, que nasceu em Vila Real. Ao PÚBLICO, contou que o cheque lhe vai permitir “novos projectos, com mais fôlego e menos ansiedade”.

Para este livro, Mané Peixoto “criou imagens só com linhas e cores, mas com vários pontos de vista; sem abebezar, nem figurar”, nas palavras de Dora Batalim Sottomayor, especialista em livro infantil, que com ambas conversou no final da cerimónia.

Quem avaliou as candidaturas para o prémio de ilustração foi António Jorge Gonçalves, João Fazenda, Madalena Matoso, Maria João Fernandes e Filipa Pimentel.

Eu e o Segredo do Faraó fala de um miúdo, Artur, que quer muito ter um cão e tudo faz para o conseguir. Mas essa história fica para contar noutra ocasião.

Mais artigos Letra Pequena

Sugerir correcção
Comentar