Retrato de um país e de um tempo através da sua Arquitetura Popular
Uma obra fac-símile editada pelo PÚBLICO, em parceria com a Ordem dos Arquitectos e a editora A Bela e o Monstro. Não perca os 12 fascículos, distribuídos todas as sextas-feiras, com o PÚBLICO.
Os dicionários dizem que um inquérito “é um conjunto de diligências que têm por fim averiguar realidades através de testemunhos ou manifestações materiais de fenómenos”.
A meio da década de cinquenta do século passado o Sindicato Nacional dos Arquitectos decidiu, a partir de uma ideia de Keil do Amaral, promover um Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa com o objetivo de dar a conhecer as formas como a população do nosso país construiu e transformou o território onde vivia.
Keil do Amaral tinha sido presidente do Sindicato, eleito livremente pelos seus pares, mas pouco tempo depois foi afastado desse cargo pelo governo de então por ter ousado criticar no Diário de Lisboa alguns aspetos da política do Estado Novo, no que se referia ao problema da habitação “para o maior número de famílias”.
Mas a ideia vingou e a direção seguinte, imbuída do mesmo espírito, tentou junto do Instituto de Alta Cultura a obtenção de apoio financeiro para aquela tarefa, recebendo em troca uma recusa. O contributo para esse fim acabou por vir do Ministério das Obras Públicas através da Direção Geral de
Urbanização e do Fundo de Desemprego.
Não terá sido, porém, por mero impulso cultural que o MOP assim fez. Em todas as ditaduras implantadas na Europa durante o século XX, na Espanha de Franco, na Itália de Mussolini, no nazismo de Hitler e na Rússia de Stalin, governantes e seguidores procuravam com afã uma “arquitectura nacionalista”. Não fugiu à regra o Estado Novo, ao impor um estilo que revertido em modelos deveria enfatizar, louvando-as, todas as obras do regime, fossem elas um imponente Palácio da Justiça, um posto da guarda-fiscal ou uma modesta Casa do Povo.
Na introdução da 1.ª edição do livro Arquitectura Popular em Portugal, consequência imediata do Inquérito, lê-se: “Portugal (…) carece de unidade em matéria de Arquitectura. Não existe, de facto, uma ‘Arquitectura Portuguesa’.
Entre uma casa minhota e um ‘monte’ alentejano há diferenças muito mais profundas do que entre certas construções portuguesas e gregas. Entre as habitações do Paul e as de Évora-Monte são insignificantes os traços comuns.”
Na verdade o que o Inquérito revelou foi a existência multifacetada da relação gentes-sítios e tempos, ou seja, a forma como as populações habitavam e ordenavam os campos em torno das suas casas; o que cultivavam em terrenos seus ou alheios em função do clima ou da natureza do solo; como e o que
pescavam em mares e rios; como se distribuíam pelo território ou como construíram povoações espraiadas em planícies, ribeirinhas ou empoleiradas em serranias.
Keil do Amaral, interrogado sobre se existira ou não dentro daquela variedade algo que distinguisse o caso português de todos os outros, disse que sim, que havia e que a diferença residia na capacidade de o povo português “conseguir superar as bases materiais da sua existência”.
Na ponta ocidental da Euro-Ásia, em situação de finisterra, num território pedregoso, onde só uma ínfima parte é solo arável, de clima temperado mas caprichoso, onde no mesmo ano e em curtos intervalos de tempo tanto há ventos como calmarias, cheias e secas, frio, calor e fogos… Num país que só tem duas fronteiras, uma das quais muitas vezes é um mar furibundo, vive um povo que, com materiais do pé da porta, constrói as suas casas e tudo o mais de que necessita para viver, incluindo o amanho dos campos e em tudo isso incute valores emotivos, ou seja, das carências faz Arte. Foi o que o Inquérito disse.
É significativa do ambiente cultural do país a comparação que se pode fazer de dois acontecimentos simétricos em relação ao tempo, antes e depois do Inquérito. Em meados do século XX, o Secretariado de Propaganda Nacional distinguiu uma povoação como “a aldeia mais portuguesa de Portugal”. A nomeação foi veementemente contestada no 1.º Congresso Nacional de Arquitectura em Maio de 1948 por aceitar o miserabilismo como virtude e a resignação como fatalismo. Perto de duas dezenas de anos depois o Inquérito louvou a totalidade do povo por, a partir de escassos recursos naturais, ter gerado beleza generalizada nos seus edifícios, nos conjuntos que ergueu ou nos campos que transformou. E aqui se destaca o papel da mulher em tudo isso: na lida das casas, no tratar dos filhos, no amanho das terras, nas salinas ou na azáfama das tarefas ligadas à pesca.
O Inquérito negou a existência de uma arquitetura nacional, cobrindo igualmente todo o território português e, pelo contrário, forneceu uma imagem real do país através da sua arquitetura e das grandes variantes regionais que apresenta: o Norte, atlântico, sempre verde, a policultura e a relação família-casa-courela-propriedade e o cadastro retalhado; o Meridião, mediterrânico, seco, latifundiário, as grandes aldeias, compactas, depósitos de assalariados e, finalmente, o malfadado Interior, continental, agreste, dado à pastorícia e de há pouco tempo para cá dado ao eucalipto.
Frederico George, um dos séniores responsáveis por uma das equipas do Inquérito disse perante os noviços da arquitetura que iriam fazer o trabalho de campo: o arquiteto erudito projeta gerindo um conflito entre a emoção e a razão e tem à sua disposição vastos conhecimentos que vão desde o comportamento humano à física dos materiais; os seus companheiros, os construtores populares, terão passado pelos mesmos dilemas e tiveram a ajudá-los a intuição e sabedorias ancestrais. Por caminhos diferentes ambos convergiram em propósitos comuns. Haverá que conhecê-los e respeitá-los, sem necessidade de os imitar. Foi esta a essência do Inquérito.
Na verdade o Inquérito conduziu o nosso país a singularidades únicas no campo da cultura arquitetónica, pois foi aqui, em Portugal e talvez exclusivamente, que os princípios básicos do Movimento Moderno (sinceridade, coerência, humanismo, emoção…) se fundiram com valores vindos da
população e assumiu feição política. Neorrealismo na Arquitetura se poderá chamar o fenómeno. Olhai a obra de Nuno Teotónio Pereira, ele também
participante no Inquérito.