Humanos entre máquinas e sonhos
Em Emoção Artificial, de Jorge Gomes Miranda, distinguido com o Prémio Autores 2024 para Melhor Livro de Poesia, pela Sociedade Portuguesa de Autores, os robots têm vontade e desejo. Sonham e sentem.
O que dizer de novo, interrogo-me também hoje aqui, quando tudo parece já ter sido dito, quando as próprias palavras diariamente se gastam na boca dos tiranos e dos seus discípulos que nos tentam entorpecer com as suas indistinções entre verdade e mentira; ou seduzir, capturar para a sua Feira de Vaidades e interesses pessoais ou corporativos, desprovidos de consciência do bem comum e da preocupação com o equilíbrio da Terra que habitamos?
O que dizer sim, quando palavras como Verdade, Justiça e Igualdade… que foram faróis do pensamento e da acção para tantos que se gastaram a sonhar, como diria Raul Brandão, e viveram e morreram a lutar por ideais (e em muitos lugares do mundo, não o esqueçamos, homens e mulheres que não aceitam a subjugação são hoje sistematicamente agredidos, torturados e mortos)… o que dizer quando essas palavras são traficadas sem misericórdia?
O que dizer sim, quando palavras como Compaixão, Beleza e História…são igualmente usurpadas e usadas em sentido perverso, por discursos de engodo, mentira e conformidade, contaminadas pela indiferença polida, a crueldade e a morte?
Palavras proferidas por humanos vingativos e sem escrúpulos, de frágil código deontológico, rasurado de qualquer preocupação moral.
O que dizer ainda e sempre, com a urgência do conhecimento do que não sabemos ainda e do amor por tudo o que cuidou de nós durante séculos, chame-se Arte, Natureza ou Humanidade.
E eis-nos chegados (mas não terá já tudo começado com a Primeira Guerra Mundial e os horrores que aí a técnica semeou, revelou?), aterrados, diriam outros, no duplo sentido de quem chega a terra incógnita e se pode sentir indefeso, à mercê de sevícias por nomear, qual personagem de Kafka, à era, hegemónica como nenhuma outra até hoje, das máquinas ditas inteligentes (tão diferentes estas, das “máquinas desejantes” de Gilles Deleuze), dos programas da IA que permitem velocidade na entrega da informação e do saber (mas uma informação isenta e rigorosa e que não promova os estereótipos, a fúria e o ódio? Mas um saber que não se limite a ser resultante de mera compilação de dados e análise de padrões, mas sim conhecimento, reflexão, dignidade e desejo?)
Programas da IA que, a crer nas palavras de alguns dos seus fundadores, apresentam inclusive a cura para os principais males do espírito (a inquietação, a crítica social e a melancolia?), a resolução dos conflitos mundiais e uma felicidade infinita em formas coloridas de entretenimento tautológico.
Todos conhecemos os nomes dos inventores tecnológicos da moda; nomes que parecem confiscar exclusivamente para si a ideia de genialidade e de sabedoria que outrora eram também atributos de artistas, filósofos e cientistas; seres que hoje parecem ocupar um lugar quase inexistente, ou irrelevante, à mesa das cimeiras onde se tomam as grandes decisões estratégicas e civilizacionais.
Nomes e as suas corporações que promovem – como quem promove mais um produto essencial, imprescindível, vital – a ideia de um optimismo sem fronteiras, um Futuro Radioso, que encontraria antídoto para as doenças crónicas e até para a própria ideia de morte como a conhecemos.
Uma vez mais parece ser condição e sina dos artistas, e dos escritores em particular, serem convidados a reflectir sobre qual então o papel da palavra, do livro, da arte em geral, neste tempo presente; reflexão que como que os obriga a explicar e a justificar a sua existência e modos de vida.
Como se este tempo em que quase tudo é transaccionável, precário, perecível e dispensável; em que quase tudo (e todos) é analisado segundo a bitola da comunicação estratégica e da vontade de poder, não suportasse outras realidades mais dadivosas, corajosas, autênticas e testemunhais como as do livro e os seus criadores, ou as da dança e os seus bailarinos, ou as da… quer dizer, as de qualquer linguagem artística que procura ser primordialmente investigação, mudança e risco, e não um mero suplemento de alma, um bibelot, objecto de entretenimento e lucro em quaisquer salões ou bunkers de famosos.
Uma arte – isto é uma forma de vida total – neste tempo que promove explicações cada vez mais light, ligeiras para situações complexas que justificam e demandam tempo; tempo de reflectir circunstâncias e contextos; tempo de ler devagar; tempo de ponderação cognitiva e axiológica e de atenção à memória histórica; tempo para viver, para vivermos todos nós: lugares, humanos e seres da flora e da fauna, que carecem de respeito e amparo, em risco que estão muitos de extinção por incúria e destruição.
Não sei. Não tenho certezas abstractas ou utopias consumíveis, tecnológicas ou outras, a propor.
No meu caso pessoal, por razões profissionais e de gosto, vivo entre o fascínio e a dúvida, outras vezes entre o assombro e o temor, diante do mundo tecnológico da IA e do Algoritmo que já moldam os nossos caminhos comportamentais.
Fascínio e assombro, por tudo aquilo que smartphones, ereaders, tablets, computadores, ChatGPT, tecnologia robótica, algoritmos… permitem e possibilitam na transformação qualitativa de muitos sectores da vida quotidiana, da saúde à indústria, e em certos serviços, esperançoso de que todas as tecnologias já existentes ou emergentes contribuam decididamente para beneficio público e universal, e sejam, por exemplo, quer os assistentes pessoais inteligentes, quer os robots, autênticos coadjuvantes, sinceros co-actores no mistério e na aventura da vida.
Os gadgets, utilizo-os com prazer diariamente, mas o mais moderadamente possível, pois o risco de nos tornarmos como que seus escravos e abandonarmos a liberdade livre, garrotados que podemos ir por discursos e imagens distractivas, anestesiantes, quando não violentas, é crescentemente real.
E não esqueço – e por isso a dúvida e o temor – o quanto, no meu entendimento, esses utensílios, essas ferramentas transportam de razão, ou desrazão, inquietante.
Daí considerar que se os mundos da IA e do Algoritmo não forem enquadrados (no caso da arte, certamente, em legislação universal e transparente e protectora de direitos dos criadores que podem assistir à delapidação e ao saque do seu original capital criativo pela cópia e a simulação (simulacro); mas também na necessidade de, enquanto cidadãos, adoptarmos hábitos de vida mais críticos e naturais, no sentido de nos aproximarmos com o corpo do corpo do outro, da natureza, dos rios, dos mares, das montanhas, dos jardins, do silêncio da contemplação das formas que as nuvens tecem em Novembro), esses mundos tornar-nos-ão meros consumidores passivos; quais máquinas híbridas, desprovidas das aspirações e dos sonhos que tivemos um dia em ultrapassar os limites do conhecimento e do humano.
Se a chamada Inteligência Artificial for avançando pela terra sem considerar a emoção como componente essencial, vértebra de qualquer embrião de presença do humano na sociedade do Futuro, e a consciência como clave interpretativa do que é intrinsecamente humano… e se o Algoritmo, esse companheiro virtual dos nossos desejos mais secretos, se tornar um voyeur que outros utilizem contra nós e os nossos gostos, e que nos devassa sem fronteiras a existência, ambos revelarão porventura maioritariamente, não o bem comum ou a sonhada (já só por filósofos e artistas?) possibilidade de paz perpétua (que é sempre precária) e existência harmoniosa com o planeta, mas a perigosidade da sua já hoje abundante utilização, por exemplo, para fins militares de vigilância e destruição de alvos humanos e territoriais.
Em Emoção Artificial, o livro que escrevi, os Robots têm uma história e estórias para contar, vontade e desejo.
Aproximam-se do que chamamos pensamento e sonham e sentem a carícia do vento e do mar e a dor da solidão, com ou sem família.
Têm ilusões e memórias e são corpos e máquinas, híbridos que desejam outros corpos, não meramente no sentido erótico, mas no de relação complexa entre subjectividades.
E os Algoritmos não dependem de nenhuma consciência supra-ominisciente e autoritária; ao invés, manifestam um espírito rebelde, promovem a autonomia de escolha e instigam-nos a resistirmos. De que modo? Por muitas vezes pousarmos os gadgets e partirmos e conhecermos e amarmos a Vida, a Natureza e a Arte que urge proteger.
O mundo que virá? Ou sortilégios do que chamamos poesia?
E a poesia como sabemos endereça-nos, oferta, um tipo de conhecimento que não podemos encontrar noutro lugar. Fala para a nossa memória e inteligência; é desejo e encontro emocional; vontade solar e necessidade de resgatarmos o que resta de sagrado nas coisas mínimas e nos gestos de reparação do que quebrado está e aguarda a luz das nossas mãos.
Dramatiza ainda a imaginação celebratória ou agónica, a experiência de júbilo ou perda, e o tipo de privacidade e de sonhos íntimos a que, esperemos todos, nenhum software de espionagem, nem nenhum algoritmo desregulado, ou outra qualquer máquina sem ética, algum dia possa aceder de modo totalitário sem o nosso informado e lúcido consentimento.
Para que humanos, demasiado humanos, feitos de erros e imperfeições, vulnerabilidade e coragem, redenção e vida nova e justa, possamos, apesar das calamidades, continuar a ser plenos e livres pelas décadas vindouras.
Lado a lado com as máquinas inteligentes e emocionais com que hoje criativamente sonhamos. Pelos caminhos da alegria.
Texto lido na cerimónia de entrega do Prémio Autores 2024, a 28 de Novembro, na Sociedade Portuguesa de Autores