Monsieur Tout-le-monde

Toda a gente percebe o significado de consentimento. Um dos homens acusados revela-o quando se caracteriza como vítima por não saber que estava a ser filmado. Gisèle Pelicot ficará para a história.

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A sentença do caso Mazan foi proferida a 19 de Dezembro. Culpados. O ex-marido e 50 outros homens que durante uma década violaram Gisèle Pelicot enquanto ela estava inconsciente por ter sido drogada pelo marido.

A senhora Pelicot decidiu abdicar do anonimato que normalmente rodeia os processos por violação e usar o seu próprio pesadelo como alavanca para o debate público e a mudança social. Para que a vergonha mudasse de lado, disse. E esta decisão mudou tudo.

Fomos obrigados a confrontar o imaginário da violação. Os violadores não eram homens não integrados na sociedade, homens com perturbações mentais profundas ou homens armados. Eram jornalistas, motoristas, empregados de supermercado, funcionários públicos, novos, velhos, pais, avós – homens comuns, um Monsieur Tout-le-monde.

E a vítima não era uma mulher jovem a quem se pudessem apontar os putativos factores de expiação: estava vestida assim, tinha bebido, dorme com muitos homens. Em vez disso, vimos diante de nós uma senhora de 71 anos, uma avó parisiense, vestida de forma elegante e discreta, com semblante calmo e passada confiante.

A táctica da defesa foi a de sempre: acusar a vítima de mentir, questionar a sua credibilidade, lançar a ideia de que tinha sido conivente com os factos. Nem a abundância de prova travou esta linha de argumentação. A senhora Pelicot e os seus advogados quiseram que os vídeos das violações fossem reproduzidos. O silêncio incómodo que descia sobre a sala de audiências era interrompido pelo som da vítima a ressonar nos vídeos, o seu corpo imóvel.

Eis alguns dos argumentos que os acusados usaram ao longo das sessões de julgamento, numa tentativa de excluir a ilicitude ou a culpa:

- Eu sabia que ela estava inconsciente, mas não que não tinha dado o seu consentimento.
- Na altura eu não sabia o que era o consentimento.
- Eu fui um violador, mas já não sou.
- Eu não sabia o que fazer. Congelei, estava a trair a minha mulher.
- Fui drogado.
- Fui manipulado.
- Também eu sou uma vítima, porque eu não sabia que estava a ser filmado.
- Pensava que estava a participar numa fantasia do casal.

Nas palavras de Virginie Despentes, “os homens condenam a violação; o que eles fazem é sempre outra coisa”. E a sociedade tolera, desresponsabilizando. Concentramo-nos na intenção e nas consequências para a vida dos violadores. Criamos a ideia de que há violações e violações, umas mais verdadeiras que outras. E os processos criminais acabam por se tornar uma segunda vitimização – pela forma como as mulheres violadas são tratadas pelas instituições médicas, policiais e judiciárias.

O que é que faz com que numa vila de um país europeu um homem tenha convencido tão facilmente tantos homens a ter relações sexuais com uma mulher inconsciente e com quem nunca trocaram uma só palavra? A erotização do domínio: ter relações sexuais com mulheres que são tratadas como objectos, que são corpos à disposição.

Toda a gente percebe o significado de consentimento. Um dos homens acusados revela-o quando se caracteriza como vítima porque não sabia que estava a ser filmado. Mas, enquanto sociedade, continuamos a resistir a consagrar o consentimento livre da vítima como base para definir a violência sexual.

O consentimento ainda não faz parte da definição de violação no direito criminal francês e não foi possível chegar a acordo para incluir tal definição na nova Directiva (UE) 2024/1385 relativa ao combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica.

O nome Gisèle Pelicot ficará para a história. Mas a sua é apenas uma entre muitas e a mudança é demasiado lenta. Precisamos de alterações legislativas, dotações orçamentais e recursos humanos para enfrentar a cultura de violência sexual e criar um sistema que proteja as vítimas. As mulheres têm direito a uma justiça de melhor qualidade.

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