Macron troca insultos com habitantes de Mayotte atingidos pelo ciclone Chido

Presidente francês respondeu à multidão enfurecida que estariam “numa merda muito maior” sem a ajuda de França. Número de mortos cifra-se agora em 35, mas teme-se que sejam muitos mais.

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Uma criança carrega destroços numa praia na ilha devastada pelo ciclone Chido REUTERS/Gonzalo Fuentes
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Moradores furiosos de um bairro de Mayotte atingido pelo ciclone Chido interpelaram o Presidente francês, Emmanuel Macron, que perdeu a compostura e lhes respondeu que estariam "numa merda muito maior" sem a França durante a sua visita ao arquipélago no oceano Índico.

Quase uma semana depois da tempestade, a falta de água potável na região deixou os nervos à flor da pele neste que é o território ultramarino mais pobre de França.

"Sete dias e não consegue dar água à população!", gritou um homem a Macron, ao que o Presidente respondeu perante a multidão que se juntou no bairro de Pamandzi, na noite de quinta-feira: "Não ponham as pessoas umas contra as outras. Se puserem as pessoas umas contra as outras, estamos lixados." E acrescentou: "Dêem-se por felizes por estarem em França. Se não fosse a França, estariam numa merda muito maior, 10.000 vezes maior, não há nenhum lugar no oceano Índico onde as pessoas recebam mais ajuda."

No passado, Macron teve muitas vezes problemas com comentários improvisados em público que, segundo ele, se destinavam a "dizer as coisas como elas são", mas que foram muitas vezes considerados insensíveis ou condescendentes por muitos franceses e contribuíram para a queda acentuada da sua popularidade durante os sete anos que já leva como chefe de Estado francês.

Em França, deputados da oposição não perderam tempo a condenar a postura de Macron. "Não creio que o Presidente esteja a encontrar as palavras de conforto adequadas para os nossos compatriotas de Mayotte, que, com este tipo de expressões, têm sempre a sensação de serem tratados de forma diferente", afirmou Sebastien Chenu, deputado da União Nacional, de extrema-direita. Também Eric Coquerel, deputado da França Insubmissa, de extrema-esquerda, considerou o comentário de Macron "completamente indigno".

Questionado sobre os comentários numa entrevista concedida já nesta sexta-feira, Macron disse que algumas pessoas que o interpelaram eram militantes políticos da União Nacional e que queria contrariar a narrativa da oposição de que a França estava a negligenciar Mayotte. "Ouço essa narrativa, que está a alimentar a União Nacional e algumas das pessoas que nos insultaram ontem, segundo a qual 'a França não está a fazer nada'", disse Macron à televisão local. "O ciclone não foi decidido pelo Governo. A França está a fazer muito. Temos de ser mais eficazes, mas os discursos divisionistas e demagógicos não ajudam", completou ainda.

As autoridades de Mayotte, que fica a cerca de 8000 km da França metropolitana,​ confirmaram até agora 35 vítimas mortais na sequência do Chido, mas teme-se que milhares de pessoas possam ter morrido à passagem do ciclone. Alguns dos bairros mais afectados das ilhas, bairros de lata nas encostas formados por cabanas precárias que albergam imigrantes sem documentos, ainda não foram alcançados pelas equipas de resgate e salvamento.

Pior tempestade em 90 anos

Macron, que prolongou a sua visita a Mayotte para passar mais tempo a observar os danos causados pela pior tempestade a atingir o território nos últimos 90 anos, respondeu que as autoridades estavam a procurar aumentar a distribuição de água e alimentos. "Compreendo a vossa impaciência. Podem contar comigo", disse.

O ministro do Interior, Bruno Retailleau, avançou que 80 toneladas de alimentos e 50 toneladas de água foram distribuídas na quinta-feira em nove das 17 comunas de Mayotte e que as restantes oito receberiam provisões nesta sexta-feira. "Tudo está preparado para permitir a distribuição de 600.000 litros de água por dia, ou seja, dois litros por habitante de Mayotte", declarou na rede social X.

O Estado francês gasta cerca de 1,6 mil milhões de euros por ano em Mayotte – cerca de 8% do orçamento para os territórios ultramarinos – e 4900 euros por habitante, contra 7200 euros que destina aos habitantes da ilha da Reunião ou 8500 euros aos habitantes de Guadalupe, segundo os documentos oficiais do orçamento para 2023. As preocupações com a imigração ilegal e a chegada de muitos migrantes indocumentados ajudaram a transformar o território num reduto da União Nacional, com 60% a votarem em Marine Le Pen na segunda volta das eleições presidenciais de 2022.

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Orações de sexta-feira na Mesquita de Vendredi, em Mayotte, após o ciclone Chido Yves Herman/Reuters

Ali Djimoi, que vive no bairro de lata de Kaweni, nos arredores da capital Mamoudzou, disse que Mayotte tinha sido "completamente abandonada" pelo Estado francês. "A água que sai dos canos – mesmo que estejam a funcionar – não se pode beber, sai suja", disse à Reuters.

Djimoi relatou ainda que oito vizinhos seus morreram na tempestade e que dois deles foram rapidamente enterrados perto de uma mesquita. As autoridades advertiram que será difícil estabelecer um número exacto de mortos, em parte porque algumas vítimas terão sido imediatamente enterradas, de acordo com a tradição muçulmana.

Os muitos imigrantes sem documentos das Comores, de Madagáscar e de outros países que ali habitam também complicam a situação. Segundo as estatísticas oficiais, a população de Mayotte é de 321.000 habitantes, mas os números reais serão bem maiores. As ilhas, próximas do arquipélago das Comores, ficaram sob o controlo de França em 1841. Em 1974, Mayotte votou a favor da permanência em França, ao mesmo tempo que as três principais ilhas das Comores optaram por formar um Estado independente.

O Chido também matou pelo menos 73 pessoas em Moçambique e 13 no Malawi depois de ter chegado à África continental, de acordo com as autoridades desses países.