Interdisciplinaridade: no meio de lugar nenhum?

Os avaliadores de concursos ou revistas científicas tendem a ser disciplinares. A ciência do futuro assenta também na nossa capacidade de pensar de forma inovadora para além de todas as disciplinas.

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A interdisciplinaridade é hoje um conceito muito na moda. A ideia é que, cruzando informação e metodologias de várias áreas científicas, se possa inovar, surgindo outros tipos de conhecimento. Mas, se fazer um (bom) projeto interdisciplinar é complicado, tê-lo aprovado e publicar os seus resultados é ainda mais difícil.

Maria Leptin, presidente do European Research Council (ERC), que concede as mais prestigiadas bolsas de investigação europeias, conhece bem o problema, mas admite dificuldades em o resolver. Apesar de pretender promover investigação interdisciplinar, não sabe como o fazer sem pôr em causa o critério de excelência absoluta, a essência das bolsas do ERC.

Isto porque os avaliadores de concursos ou revistas científicas tendem a ser disciplinares. E, em caso de dúvida, privilegiam projetos ou artigos que lhes são mais familiares. É o equivalente a um triatleta competir em eventos isolados de natação, corrida ou ciclismo. Em cada uma das provas individuais perde sempre para adversários que, em vez de treinarem três coisas, se focaram apenas numa.

Acontece que a opção habitual é formar painéis de avaliação que se limitam a juntar, pegando no exemplo acima, uma ciclista, uma nadadora e um corredor numa mesma sala. Isso não é um painel interdisciplinar, é um saco de gatos.

A estratégia deveria consistir em procurar desde logo avaliadores que façam investigação interdisciplinar (ou seja, triatletas). Existem, mas identificá-los dá trabalho, e implica critérios não tão canónicos.

A mesma questão põe-se em ciclos de estudo, onde, para poder ser validada pela Agência Nacional de Acreditação (A3ES), a formação necessita de uma maioria (75%) de docentes com treino numa área específica. Outro tipo de formação terá, por isso, de ser encontrada nos 25% sobrantes. Nalguns casos, é mais do que suficiente; noutros, é impossível sem desvirtuar as propostas.

Ora, se um foco disciplinar faz sentido numa primeira fase (licenciatura), já não será o caso de todos os mestrados ou, sobretudo, doutoramentos – graus nos quais se devia pretender sair de espartilhos disciplinares, e ajudar alunos a interpelar melhor o mundo. Dando-lhes ferramentas úteis para exercerem, de forma inovadora, atividades que podem nem existir ainda, mas que eles próprios ajudarão a definir.

Note-se que a direção da A3ES admite essa dificuldade, constrangida, neste caso, pela lei. Mas as leis podem-se mudar. Se há coisa que intuímos das (boas) formações do futuro é que não poderão ser estanques e imutáveis.

Às vezes, ser pioneiro tem os seus inconvenientes. Mas, à medida que outros vão chegando, nacional e internacionalmente, o movimento transforma-se e cresce. Quase um quarto de século após a fundação do Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra (IIIUC), uma ideia à frente do seu tempo, era importante refletir seriamente sobre o que queremos com o conceito de interdisciplinaridade. E mudar o que for preciso, no sentido de o pôr a funcionar com o potencial inegável que tem. De modo a não ser necessário continuar a encaixar múltiplos objetos flexíveis de formas variadas em minúsculas e rígidas caixas quadradas.

A ciência do futuro depende de muita coisa, mas assenta também da nossa capacidade de pensar de forma inovadora em conjunto, simultaneamente com, e para além de, todas as disciplinas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Vice-reitor para a Investigação e director do Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra

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