Há dias, fui confrontado com declarações de um reputado deputado que, entre o seu comentário televisivo, apresentava a seguinte tese: a Aliança Democrática procedeu à operação policial na zona do Martim Moniz com o claro objectivo de se apoderar de um tema “do Chega”. A frase, entretanto, ganhou vida própria e foi repetida por perfis políticos numa verborreia sem sentido, que apenas amplificou a desinformação.
Apercebi-me, de imediato, que mesmo uma desenvolta e sensata classe política dos maiores partidos de Portugal não se apercebe, ela própria, que está a errar de forma crassa no modo como encara o fenómeno de crescimento da extrema-direita.
A expressão “tema do Chega” merece ser dissecada. Há uma ideia perigosa aqui implícita: a de que os problemas do país podem ser exclusivos a um partido. De que as questões mais sensíveis, mais concretas ou mais desconfortáveis pertencem a alguém. E, mais grave ainda, de que falar delas é uma estratégia e não um imperativo.
Definida esta posição, não será difícil entender como a percepção é reveladora do divórcio entre os partidos políticos — juntos numa Assembleia da República isolada numa pequena ilha lisboeta — e a realidade da maioria dos portugueses.
Quando um tema “pertence” a alguém é porque os outros dele fugiram. Se há uma questão que um partido extremado consegue monopolizar é porque os restantes desistiram de a tratar. Não é que a AD fale de temas do Chega, é que o Chega ocupou os silêncios. E, embora totalmente alheado de um correcto desenvolvimento de uma estratégia de políticas públicas, o Chega é, sim, absolutamente certeiro na identificação das grandes fissuras que afectam a generalidade dos portugueses.
A recente operação policial no Martim Moniz — criticada por uns como desproporcionada, celebrada por outros como necessária — revela, de forma bastante cristalina, este afastamento. Quem desce até aos centros das cidades sabe o que lá está. Vê pessoas fragilizadas e possivelmente manietadas pelo tráfico de seres humanos, imigrantes esquecidos e negócios parados. Vê o abandono de quem trabalha a horas tardias e o desespero de quem não tem outra forma de sobreviver. E sente, também, o receio de passar ali quando a noite cai. Estas são realidades que não pertencem a um partido. Pertencem a Lisboa. Pertencem a Portugal.
No entanto, este episódio acarreta também outra camada de complexidade. Há operações semelhantes noutros pontos do país que não têm a mesma exposição mediática, ainda que sejam de uma comparável escala. O que distingue esta foi uma fotografia que, espalhada rapidamente no X, veio acompanhada de textos comparativos exagerados e polarizadores. Esta fotografia representa um segundo de uma perspectiva, não a totalidade do dia nem a complexidade do trabalho policial.
Na verdade, os portugueses estão cansados desta lógica de pertença. Nenhum problema tem cartão de militante. A insegurança, a habitação inacessível, os salários baixos, a imigração desregulada ou o abandono dos centros urbanos não são monopólios ideológicos, mas desafios que interpelam todos, sem excepção. E esperar que a preocupação venha apenas dos extremos é abrir caminho a soluções sem moderação.
Se o Martim Moniz ou qualquer outra praça do país se tornam terrenos de opinião polarizada, a culpa não é das ruas. É de quem as ignora. Durante anos, uma certa elite política acreditou que podia afastar-se do quotidiano para se concentrar no debate ideológico. Que podia ser universal ignorando o particular. Hoje, pagamos o preço dessa negligência. Uma sociedade onde as pessoas se sentem sem representação, e onde os problemas concretos são vistos como “sujos”, populistas ou marginais. Não são. São reais.
Falar do que preocupa os portugueses é uma obrigação moral. A solução não passa, pois, por ignorar os problemas ou etiquetar quem os denuncia, mas por enfrentá-los com coragem, serenidade e, acima de tudo, sem medo de perder votos. Os partidos tradicionais que deixaram estes espaços vazios deviam rapidamente questionar-se - se não são eles a ocupar a realidade, quem o fará?
Quem perdeu o contacto com o país real deve sair à rua. Ou, pelo menos, escutar aquilo que os próximos dois actos eleitorais dirão com toda a veemência. Porque os temas não têm dono. Mas o abandono, esse, tem responsáveis.