Quando a camioneta cruzar a curva antes da descida para Fânzeres, reconhecerei, como sempre, aquele cheiro a humidade e lenha queimada a sair das casas e das pedras da calçada. É como se nunca tivesse saído daqui.
As ruas estão escorregadias da chuva e meio desertas, talvez populadas por um ou outro cão vadio à procura de abrigo, e, ao longe, na casa da minha tia, as janelas brilham com a luz amarelada da cozinha onde ela, certamente, já tem o bacalhau ao lume e os pratos da consoada alinhados na mesa da sala.
Vai ser assim o Natal este ano, imagino, enquanto me escondo nas trincheiras de um cachecol algures em Heathrow e conto as horas até ao embarque, antecipando cada gesto, cada silêncio, cada palavra dita sem ser realmente dita.
Dezembro nunca chega cedo e eu contei cada semana até ao voo, não pelo Natal em si, mas pela necessidade de regressar, para me lembrar quem sou.
Ou quem fui enquanto a porta abre com aquele ranger tão familiar e a minha tia aparece com o avental preso às ancas, uma colher de pau na mão e o cabelo desgrenhado do vapor da cozinha.
Vai olhar para mim como sempre olhou entre um misto de saudade e censura: “Já vinhas mais cedo, ainda falta pôr a mesa”, dirá em jeito de ritual. Eu nunca me fui embora.
A mesa estará posta com aquela toalha alva guardada a sete chaves por doze meses à espera deste e de outros Natais — a certeza de que nada mudou.
Ao canto da sala vejo já o presépio e o Menino Jesus com a mão partida, ainda entre o burro e a vaca, porque a minha tia recusa-se a substituí-lo. “Está bom assim”, diz, e talvez tenha razão, porque nada aqui é inteiro, e ainda assim, tudo funciona.
Os meus primos chegam como chegam sempre, empurrados pelo frio e pelas crianças e o Pedro de imediato a fazer um brinde, atabalhoado e breve, enquanto se despacham as formalidades e os catraios saciam a fome.
A Sofia, como sempre, entrará sem fazer barulho, com aquele jeito dela de querer desaparecer na sombra de uma porta e os olhos a dizerem mais do que as palavras que ficam por dizer.
E eu ficarei ali, sendo ao mesmo tempo parte e estranho, um regresso nunca completo. A culpa é da distância e dos anos que teimam em passar para fazer de mim uma espécie de actor secundário na história da minha própria família.
O bacalhau será servido como sempre foi: as postas desfeitas, as batatas e as couves a fumegar e a minha tia a ladear os pratos com a precisão de um comandante a organizar um exército.
Poucas palavras serão ditas no início. O som dos talheres contra os pratos preencherá o silêncio antes do vinho e do seu efeito dar lugar às línguas soltas a recordar as histórias de todos os anos, mais as histórias de quando éramos pequenos. De vez em quando, contam-se peripécias esquecidas ou inventadas de tanto repetir.
E rimos porque o Natal é mesmo isto, uma tapeçaria de reencontros desenrolada todos os anos.
Imagino o momento no qual os miúdos se juntarão ao presépio e mexerão nas figuras de barro com os dedos lambuzados de açúcar. Hão-de rir, como ríamos nós diante da minha tia a admoestar e repreender mas sem tirar os olhos do forno onde estarão os sonhos. Os sonhos ficam sempre por comer.
Por haver demasiado de tudo, como sempre, não por excesso mas por medo de faltar algo, a minha tia enche a mesa para enganar as dúvidas na memória. Não há dúvidas, se os sonhos ficam mais uma vez por comer.
Depois da ceia, imagino já o momento no qual sairei para o quintal. O ar frio a cortar o rosto, o céu a brilhar com as estrelas tão próximas da mão em oposição ao céu londrino frio e distante e o Douro ali ao fundo, para além do casario sempre a deslizar devagar entre as margens.
Lá dentro, as vozes misturam-se entre o riso das crianças e o tilintar dos copos e por um instante, mesmo se breve, esqueço-me de Londres, do trabalho e da escola e já não sou um estranho nem um actor secundário mas parte da família e de volta à família, mesmo com os silêncios, mesmo com as lascas nos copos e as nódoas na toalha nem por isso alva.
E talvez seja isto o Natal, esta insistência em acreditar que ainda estamos juntos (estamos) e eu nunca me fui embora, apesar do tempo (e por causa do tempo) teimar em separar-nos e é tão bom voltar outra vez.