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A festa tem que ser para todos
É evidente o interesse do PSD em tomar para si as pautas radicais da extrema-direita. Luís Montenegro age feito um segundo-ministro, enquanto, na prática, o primeiro é André Ventura.
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A última semana marcou o fim dos encontros do grupo de estudo criado como pesquisador associado ao Centro de Estudos de Teatro, aberto aos doutorandos em teatro pela Universidade de Lisboa e, em filosofia, pela Universidade Federal de Pernambuco, em aproximação inédita aos dois centros de pesquisa. Juntos, mergulhamos na problemática da representatividade e representação contemporâneas, em seus sentidos políticos, sociais, culturais e estéticos.
Foram semanas de muitas leituras propostas por mim e por Filipe Campello e de espetáculos de teatro, dança, performance, ópera e trechos de obras indicados para serem assistidos em vídeo para ampliarmos as conversas. Entre as peças que cruzaram o grupo de estudo incluí aCORdo, de Alice Ripoll e Cia REC, que assistira em 2019.
No espetáculo, um grupo de jovens negros ocupa o centro da sala e se movimenta a partir do contato entre seus corpos. Expandem, aos poucos, para o ambiente, depois, ao público acomodado em cadeiras próximas às paredes, quando passam a retirar objetos das pessoas, guardando-os nos bolsos de suas roupas. O que parecia ser mais um espetáculo interativo, em que a confusão final de reencontrar os pertences poderia provocar alguma diversão caótica, revelou-se perturbador. Os performers, encostados à parede, mãos erguidas, pernas abertas, aguardam, silenciosos, as pessoas invadirem seus bolsos e corpos feitos marginais.
Lembro-me, ao perceber o encaminhamento das ações, por decidir que, se retirassem algo meu, recusar-me-ia tocá-los para recuperar o que fosse, torcendo por sua devolução no hotel em que estávamos. Mas essa era uma sensação pessoal. A imagem final era outra: o público eufórico diante a humilhação dos rapazes. Sentei-me na beira da calçada e ali fiquei por longo tempo tentando entender as sensações que nunca esquecerei. A mesma imagem veiculada nos noticiários sobre a nova ação do Governo português em Martim Moniz. Corpos específicos alinhados em paredão pela força policial.
Quando sugeri ao grupo de estudos que vissem as imagens de aCORdo, a cena em Lisboa não existia. O livro indicado como diálogo à peça foi Desobedecer, de Frédéric Gros. O filósofo francês abre seu ensaio perguntando o que nos leva a não desobedecer estruturas de poder que nos afetam de forma violenta. Em seus argumentos, a passividade obediente ocorre por hábito, por conformismo imediato, espontâneo, diante de uma sociedade cada vez mais estruturada como forma de julgamento, a partir de um pacto entre sujeitos políticos. O conformismo, portanto, está ali carregado por sua tradição.
Diante do absurdo dos imigrantes emparedados, devemos perguntar qual pacto político a imagem explicita construir. É evidente o interesse do PSD em tomar para si as pautas da extrema-direita, acreditando deslocar o eleitorado radical para si. Na verdade, os últimos anos comprovam exatamente o contrário: a maior chance é de radicalizações maiores e de fortalecimento do conservadorismo e perda de controle.
Se a direita e o centro-direita portugueses não entenderam isso, estão a cometer os mesmos erros que levaram o extremismo ao poder no Brasil: intensificar a sensação de perigo, distanciar a polícia da população, estabelecer a violência como último recurso possível de controle. Porque o PSD acredita obter um resultado diferente ao brasileiro e tantos outros países, é um mistério. Mas, como demonstra Maurizio Lazzarato, sem mudar os meios, as consequências são sempre as mesmas.
O fato é, como ouvi de um amigo português, acreditarmos que o tão propagado ‘não passarão’ não faz mais sentido. Já passaram e não querem se esconder mais. Ao fazer o trabalho sujo da extrema-direita, os radicais não precisarão sujar as mãos se ocuparem o poder. Tudo estará devidamente organizado, e eles parecerão menos ruins do que serão. O senhor Luís Montenegro age feito um segundo-ministro, enquanto, na prática, o primeiro — responsável por pensar e organizar a sociedade portuguesa — é mesmo André Ventura.
A essa incapacidade ou fraqueza de Montenegro, a essa desfaçatez política que tomou as ruas, as políticas de saúde, as relações com os imigrantes, a cultura, a fachada da Assembleia da República, que Portugal precisa desobedecer, se quiser ainda viver em um Estado minimamente democrático. Levarmos cravos aos humilhados retira da agressão a totalidade das pessoas. Contudo, não desorganiza o medo e a violência como política de policiamento.
Será preciso escapar da distopia que o conformismo moderno provoca ao nivelar as diferenças como imorais, explica Gros; pensar na produção do ‘mesmo’ ou ‘próprio’, tal como o nacionalismo propõe refundar sob a falácia da segurança, como utopia totalitarista. Em pronunciamento cínico de um dos comandantes da Polícia de Segurança Pública (PSP), é dito que o paredão feito com imigrantes seria feito mesmo se fossem portugueses, portanto, não se tratou de racismo ou xenofobia.
Disse, sem pudor, ainda que óbvio demais para ser negado. Ou seja, seguindo sua explicação, a ação despropositada e espetacularizada contra a liberdade e direitos poder se dar com qualquer um, e, ao dizê-la sem maiores problemas em canais de televisão, então Portugal está mais próximo a uma nova ditadura do que imagina.
Em 2025, que a arte nos ajude a exercitar nossas percepções e sensações, a fim de nos prepararmos mais profundamente para os perigos e absurdos, dando-nos vocabulários novos para reações críticas efetivas. E então revelaremos que Gros pode estar errado, pois o povo estará, sim, ativo, as ruas vivas, e seguiremos juntos com mais amplitude no hábito de lutar para o fascismo nunca mais voltar.
Sugestões de leituras:
> Sobre a coragem e outras virtudes, organização Adauto Novaes. Edições Sesc, 2024.
> Democracia para quem?, de Angela Davis, Patrica Hill Collins e Silvia Federici. Editora Boitempo, 2023.
> Desobedecer, de Frédéric Gros. Ubu Editora, 2008.