Em cada livro um amigo

É, portanto, urgente lermos. Mas não de uma forma qualquer: lermos juntos. Já imaginaram a beleza de um país inteiro a ler ao mesmo tempo? Um país unido pelo que tem de mais essencial, a Cultura.

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Nuno Ferreira Santos

Nunca uma segunda-feira pareceu tão longe. Raras vezes os ponteiros dos relógios se transfiguraram em tamanhas tartarugas tal a sua lânguida linguagem de lentidão. Arrastados, pachorrentos, sonolentos, segundos teimaram em demorar-se mais do que é costume até serem minutos. Minutos adormeceram tanto pelo caminho que os 60 passos para a hora se eternizaram. Horas bocejaram – pior: fizeram bocejar. Noites tardaram a partir. Dias demoraram a chegar. E tudo isto, monótono e melancólico, aconteceu afinal de repente. Bastou que se propagasse a mensagem: as livrarias voltam a abrir na segunda-feira!

Este texto é um convite e um desafio. Um convite a que saibamos estar à altura desse momento que deveria ter a solenidade que há em tudo o que é digno. E nada pode ser mais digno do que uma livraria. Não pode haver maior honestidade do que aquela que está contida nas páginas dos livros. Eles não nos enganam; mesmo que desconheçamos o que está no seu interior, não perdemos pela demora se a tanto nos atrevermos e basta folheá-los para percebermos isso. Há uma sensualidade diferente no simples gesto de virar cada página.

O desafio é que, chegada a segunda-feira mais distante de sempre, sejamos capazes de dar a resposta que nos merecem os livros. Sossegados na imobilidade forçada dos últimos tempos, mas ansiosos por nos desassossegar com cada exemplar de romance, poesia, drama, ensaio, banda desenhada, literatura infantil que por nós desespera. Esquecidos ao pó. Perdidos na escuridão. Gritando em silêncio à míngua de atenção. Desesperando por leitores que mereçam a sua riqueza. E só há uma resposta adequada a um livro: a leitura.

É, portanto, urgente lermos. Mas não de uma forma qualquer: lermos juntos. Já imaginaram a beleza de um país inteiro a ler ao mesmo tempo? Um país unido pelo que tem de mais essencial, a Cultura, também ela sujeita a prisão sem culpa formada nestes tempos estranhos que nos corroem coração e cérebro. É urgente irmos às livrarias e não sairmos de lá sós, mas sim muito bem acompanhados. Porque em cada livro, um amigo, e coisa mais preciosa no mundo não há, não é, Sérgio Godinho?

As redes sociais têm servido tanto para criticar, destruir, ofender, difundir mensagens de ódio e raiva que, pelo menos uma vez, podem estar ao serviço da palavra. Convite e desafio: espalhem a notícia, os livros estão de volta. Comprem e leiam. Divulguem e convidem mais gente a comprar. Leiam cada vez mais. Ajudem ajudando-se. Não há sagrado segredo que reste segredo sagrado depois da leitura. Ganhamos mundo. Desvendamos paixões. Rimos de medo e choramos com alegria. Assim são os livros, capazes de tudo, até de nos convencer que somos humanos e nunca deixámos de o ser. Humano, essa condição que é em si própria bênção e maldição, frescura e ardor, inteligência e idiotice, generosidade e crueldade. Solidário e solitário, vencedor e derrotado, rico e pobre, morto em vida e vivo para lá da morte. Tudo isso é dos livros, de todos nós. Mas só o saberemos quando lermos.

Segunda-feira, esse dia que tarda em chegar, que se demora como se não tivesse pressa, como se não tivéssemos pressa, é também dia de abertura das bibliotecas. E aí estão outros lugares maravilhosos, mundos à parte, recheados de sábios e de conhecimento.

Sábios não apenas os livros, mas os seus cuidadores. Aqueles coleccionadores de encantos que tropeçam de ternura enquanto folheiam leitores. Companheiros de todas as horas, em especial as piores, que nunca nos deixam caminhar sozinhos e nos sorriem sempre sob a forma de lombadas brilhantes, capas coloridas, páginas de delícia e deslumbramento. Bibliotecário(a)? O seu ofício é a partilha, altruísmo o nome do meio. Não há agradecimentos que cheguem para os compensar. E, no entanto, a única recompensa com que sonham é ver-nos ler.

Num maravilhoso e inesquecível exemplo da sua poesia, Manuel António Pina escreveu: “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo, calma, é apenas um pouco tarde.” Talvez seja também esse o caso aqui. Para os livros e para todos nós.

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