No Pico, uma antiga destilaria tornou-se alojamento de luxo (e continua a produzir aguardente)
Tem o mar diante, a montanha atrás e uma história feita de “festas, alegria e abundância”. Depois da ruína, é esse o espírito que a Adega do Fogo tenta recuperar, agora como casa de férias que mantém a história e lhe acrescenta experiências à medida. E bem tradicionais, como apanhar caranguejos à noite ou bailaricos de chama-rita.
“Isto está desgarrado, no meio de sítio nenhum, uma planície de lava, escuro”. As palavras são de Benedita Branca e nelas teremos que acreditar: a Adega do Fogo está no meio de nenhures e que bem parece estar. Na verdade, este “nenhures” é o lugar do Cabrito (Santa Luzia), ilha do Pico, e, afinal, percebemos, são cerca de 12 “adegas” - que é como quem diz, casas de fim-de-semana de quem vive na cidade. Assim, aos fins-de-semana há, normalmente, três casas ocupadas; depois, existem outras em regime de Airbnb e outras ainda que pertencem a emigrantes nos EUA, pelo que só no Verão se abrem. E a Adega do Fogo ocupa-se quando há clientes - com tempo, e, importante, dinheiro.
Nas traseiras está a montanha do Pico, à frente o Atlântico - “a 20, 30 metros quando se sai do portão principal”, descreve, “e há uma poça de banhos a dois minutos a caminhar”. Há também uma piscina aquecida, “que reflecte o Pico”, uma sauna instalada ao lado de um tradicional tanque de captação de águas da chuva. Isto, contudo, são “as modernices”, como lhes chama Benedita; porque antes de tudo há “edifícios históricos com cerca de 200 anos”. “Não se sabe a data certa, mas é de 1800 e pouco”, explica Benedita referindo-se à casa solarenga que foi de apoio à destilaria que aqui funcionava.
“O solar tinha o propósito de alojar a equipa de produção de aguardente”, descreve, “que ficava sempre depois da vindima, até Março”. No Verão, continua, a casa era menos utilizada, “mas os donos usavam para férias, festas… As pessoas ainda falam das ‘festas a que fui no Cabrito, com banda contratada para tocar’”, conta Benedita. Todas as informações que teve sobre a propriedade estavam relacionadas com “festas, alegria, abundância, celebração”. E foi isso que sentiu “um pouco no espírito da casa” quando ali chegou pela primeira vez, mesmo estando esta “arruinada, com o telhado a cair”. “Havia alegria, não era como um castelo a cair e cheio de fantasmas”, brinca.
Não hesitou: depois das Lava Homes buscava outro projecto no Pico, ilha que conhece há 40 anos e para onde se mudou há cinco anos, e foi neste pedaço de terra que fez nascer a Adega do Fogo, que abriu em Julho mas que ainda não está totalmente cumprida. Voltará a destilar aguardente - faltam apenas as licenças. “Na Primavera conto já estar a servir a nossa aguardente aos hóspedes”, prevê, “até agora temos recorrido a vizinhos”. Não é uma questão de somenos no projecto de Benedita: sempre quis manter a essência do lugar e, diz, deixava-a “muito angustiada” pensar que alguém a pudesse comprar (“agora há muita procura, de estrangeiros inclusive”) e “restaurar tudo a eito”. Produzir aguardente sempre fez, portanto, parte dos seus planos, e nem os contorcionismos que teve fazer a fizeram esmorecer.
Foi tudo restaurado - na casa principal, fizeram-se os seis quartos que a propriedade tem, onde antes existiam apenas dois, mais sala, cozinha e um armazém no rés-do-chão; a destilaria, que tinha quatro alambiques, foi dividida: numa metade mantêm-se dois dos alambiques, que vão funcionar, a outra metade é uma grande sala de jantar; no exterior, fechou-se um telheiro para sala de estar. Foi o facto de querer manter a produção de aguardente que obrigou a “improvisar” a sala de estar . “É muito complicado”, recorda, “como estamos numa zona protegida pela UNESCO, não podemos levantar uma pedra. Ou fazia sala de estar externa ou não podia produzir aguardente. Mas isso seria matar a alma do sítio… Aliás, também podia fazer quatro quartos aí…”.
Este foi um dos maiores alambiques da ilha, conta, chegou a funcionar 24 horas por dia. Foi também um alambique comunitário, aberto às pessoas que queriam “queimar”. Benedita espera agora as licenças que lhe permitiram queimar “o que quiser”: pêra, maça, uvas… - “Vou às estufas e escolho”. Vai manter a produção artesanal - faz-nos a descrição do processo - e com recurso aos meios antigos: do poço de marés que existe na propriedade (pouco mais de dez metros de profundidade e oito de diâmetro, “o maior da ilha”) virá a água que envolverá a serpentina do alambique; do tanque de captação de água da chuva, a água destilada a utilizar caso seja necessário diluir a aguardente. Não prevê fazer mais de 30, 40 garrafas para servir aos seus hóspedes.
A vontade de “querer manter as coisas” também se transpôs na recuperação dos espaços que foi o mais possível à imagem do que existia. A pedra negra permanece nas paredes, o chão é de carvalho na zona dos quartos, de cimento afagado na antiga destilaria; o mobiliário é de castanho e bastante despojado - por exemplo, os armários dos quartos “fazem lembrar os portões das vinhas do Pico”, aponta, que “não são compactos, se não, com o vento forte, iam ao chão. Os armários também têm esse arejamento”.
E quem aqui chega deve querer o arejamento das longas estadias - estas são a vocação assumida da Adega do Fogo. Aqui, aposta-se em experiências à medida e para isso é preciso tempo, considera Benedita: não se aceitam reservas para estadias de menos de cinco dias - e o aconselhável mesmo são sete, diz. “Menos não se sente o Pico nem se desfruta sequer da Adega”, avalia. Quem vem à ilha, afirma, tem sempre pelo menos dois planos, “subir ao Pico e ver as baleias” e nisso “já vão dois dias”. Podem também querer visitar o resto “do triângulo de ilhas”, ou seja, ir ao Faial e a São Jorge, prossegue. “E este não é sítio só para dormir”, defende, há que aproveitar. O óbvio - a piscina e a sauna - e o menos óbvio.
“Aqui queremos ser anfitriões”, afirma, “receber as pessoas e estabelecer relação com elas. Levamos um ou dois dias a perceber os grupos”. É nesse convívio - o primeiro dia, normalmente, é muito formal, no segundo já ajudam a levantar a mesa, no terceiro já se envolvem a lavar pratos, descreve - que surgem as propostas de actividades. Desde aulas de ioga e massagens a passeios de bicicleta “pela costa pelo Lajido ou Arcos com um mergulho”, de “pesca de carapauzinho ou apanha de caranguejos à noite, com lanternas na cabeça” a cozinha ao vivo, de animação com tocadores de guitarras do Pico e bailaricos de chama-rita a idas à horta da casa (onde tudo tem um “tamanho descomunal”).
Toda esta experiência é “de nicho”, assume Benedita, e a casa é alugada inteira - seja para a lotação de 12 seja apenas para quatro pessoas, como já aconteceu. Os preços são eloquentes: dois mil euros por noite durante a temporada alta (entre Abril e Outubro); entre Novembro e Março podem alugar-se quartos (400 euros por noite), sendo que a reserva tem de ser para pelo menos dois quartos, com a garantia de que a casa estará totalmente disponível apenas para essa reserva.
“Temos jardineiro, governanta, piscina aquecida, pequeno-almoço à hora escolhida…”, enumera Benedita. As refeições não estão incluídas na oferta - só a pedido dos hóspedes se deslocará um chef à casa para cozinhar (sempre comida tradicional açoriana) -, mas há uma cozinha para uso próprio - para uma espécie de funcionamento em auto-gestão.
Mais informações sobre o projecto no site oficial.