Plutónio: “Estou finalmente a viver a liberdade artística”

Carta de Alforria apresenta um músico “mais refinado”. Aos recordes no streaming juntar-se-á um novo marco em 2025, na Meo Arena, com sala cheia em Fevereiro e segunda data marcada para 3 de Março.

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Carta de Alforria é o novo álbum de Plutónio, que tem concertos marcados para a Meo Arena em Fevereiro e Março de 2025 PLUMA

Este texto contém excertos de áudio da entrevista a Plutónio. Para ouvir, clique nas palavras sublinhadas.

A conversa com o Ípsilon já começou há minutos quando toca o telemóvel, pousado no sofá bege do estúdio, no armazém 20A, em São Domingos de Rana, no concelho de Cascais. “Estás a ver?”, diz Plutónio enquanto mostra o ecrã, sem atender a chamada. É Lon3r Johny. “Ainda hoje de manhã estivemos 15 minutos ao telefone. É uma pessoa com quem consegui criar uma boa relação de amizade”, conta o rapper luso-moçambicano, a três meses da apresentação do novo álbum na maior sala de espetáculos do país. Foi também com Lon3r, nome destacado do trap português, que explorou “possibilidades artísticas” até ali “bloqueadas”, longe das sonoridades do primeiro álbum, quando dava passos tímidos na produção musical. O EP Anti$$ocial, editado no mesmo ano de Ordem e Progresso (2023), disco recheado de colaborações, é um projecto de que se “orgulha imenso”. “Arriscámos na produção, fizemos coisas que poderiam estar erradas de acordo com as regras tradicionais e a partir de dois mundos diferentes construímos este mundo novo, experimental, mais ousado”, diz.

A ousadia é também marca de Carta de Alforria, nome do documento que concedia a liberdade a uma pessoa escravizada e que Plutónio emprestou ao mais recente álbum, editado em Novembro. “Foi a música que me tirou de um ciclo de vida onde estive preso durante muitos anos. Agora, estou finalmente a viver a liberdade artística, independente de outras pessoas, [capaz] de crer nas minhas ideias”, explica.

Em pouco mais de dez anos, Ricardo Colaço passou de Histórias da Minha Life, gravado no quarto no Bairro da Cruz Vermelha, em Cascais, para conquistar galardões de dupla e tripla platina, com uma data já esgotada na Meo Arena (28 de Fevereiro de 2025), em Lisboa, e outra entretanto anunciada (3 de Março) e mais de 900 mil ouvintes mensais no Spotify. Segundo a editora Sony, nessa plataforma, Carta de Alforria tornou-se o álbum de um artista português mais ouvido de sempre em apenas um dia, mundialmente.

Este “maestro da rua”, como se apresenta em Ouro sobre azul, do novo disco, nasceu na década de 80 e começou a escrever na viragem do século. Em 2012, uma experiência que o fez “questionar a vida toda” precipitou o início da carreira a solo. Depois de regressar a casa de um internamento hospitalar de vários meses, descobriu no microfone um instrumento terapêutico. “Ya, certas coisas na life/ que um gajo só pode droppar me'mo no mic, né?”, confessa na primeira faixa do novo álbum. É quando grava os versos que compõem as suas canções que se sente mais vulnerável. “A música é onde partilho todas as coisas que ao longo da vida me vão azucrinando, todas as frases, ideias e, às vezes, traumas que não consigo partilhar com mais ninguém”.

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Produzido por Sam The Kid, é no tema que dá nome ao álbum que Plutónio faz a partilha mais pessoal: “Ajoelhei no chão antes de orar/ no dia do velório, p'a ninguém me ver chorar/ à noite eu via as estrelas e ficava a perguntar/ mas se o bom morre cedo, então porque é que ainda 'tou cá?”.

Desde o lançamento de Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor, procurou dividir estúdio com outros artistas, experimentar sonoridades e libertar-se das amarras do puritanismo que muitas vezes limita o rap “das ruas”. Do exercício de transformação nasceu “um Plutónio mais refinado”. “Não escrevi uma única palavra neste álbum”, conta.

Expliquemos: Carta de Alforria marca a estreia do músico numa forma de arquitectar canções que tem vindo a conquistar adeptos no universo do hip-hop, o “punch-in”. “Foi um processo diferente do que fiz até aqui. Eu vou para o estúdio sem nada preparado e tudo o que eu fizer sai ali no momento. Gravo uma frase, duas frases, três frases... Claro que também estou no estúdio com mais pessoas que me vão dando opiniões e posso fazer alguns ajustes e melhorias até ao resultado final.”

Mas se no processo artístico “muita coisa mudou nos últimos anos”, também é verdade que há traços identitários aos quais o rapper não escapa. “É da minha natureza fazer músicas mais melancólicas, introspectivas.” É precisamente assim que arranca o primeiro de dois discos que compõem Carta de Alforria. “Autobiografia, transformei a minha dor em poesia/ minha liberdade é nestas melodias”, anuncia em País das maravilhas.

Menos policiamento, mais mistura

Foi para equilibrar a inclinação melancólica, notória em Montanha, Deja vu ou Deserto, que escolheu trabalhar com diferentes produtores, dos já familiares DJ Dadda (Cafeína, Lucy Lucy ou Somos Iguais) e Progvid (Anti$$ocial), a Charlie Beats, Ariel Beni ou o britânico Sebz Beats. “Eles têm a sua própria visão e obrigam-me a ir a lugares diferentes do ponto de partida.”

No quarto álbum do rapper que conquistou, em 2020, o primeiro disco de platina para um álbum nacional editado exclusivamente em formato digital (Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor), o hip-hop cruza-se com afrobeats, sonoridades latinas (Perguntam como), R&B e até o drum and bass (por breves instantes, no arranque de 6am em Paris).

Esta vontade de experimentar diferentes sonoridades começou em casa, ou não fosse a alcunha atribuída pela família, “Dudu”, inspirada numa canção dos Kassav', banda de Guadalupe, arquipélago no Sul das Caraíbas. “Quando era miúdo, ouvia aquela música e ficava bem-disposto, parava de chorar.” Há quem tenha uma memória diferente da origem do epíteto que se mantém até hoje, e a recordação já originou discussões amigáveis, mas a mãe garante que foi mesmo assim.

Nesse ambiente familiar, “a música sempre esteve muito presente”: ia de Roberto Carlos, Tony Carreira e Michael Jackson, escolhas da matriarca, à música urbana apresentada pelos irmãos. “Acho que essa diversidade de idades dentro de casa e de músicas que se ouvia meio que me abriu a mente para consumir música sem preconceito. E o que eu faço é também consequência disso, de gostar de tanta coisa diferente”, conta.

Plutónio já não é o rapper que escreveu e produziu Um caminho pela frente (2013). Multiplicou-se, agora é também cantor e di-lo sem embaraço. “Antigamente um rapper só fazia os versos e tinha de chamar um cantor para compor o refrão. Começámos a encontrar no hip-hop o mesmo preconceito que o hip-hop encontrou junto de géneros mais convencionais quando apareceu nos anos 80 e 90.”

Confessa que já sentiu esse preconceito de pares em relação à sua música. “Ainda existe, mas melhorou bastante”, diz. “Hoje em dia é muito mais normal os rappers cantarem e os refrães serem mais melódicos. E eu acho que essa evolução é uma consequência do mundo em que nós vivemos, onde tudo é mais misturado. Em vez de policiamento, era necessária mais motivação [para experimentar novos cruzamentos]. E espero que projectos como este inspirem nomes que eu cresci a ouvir a cruzarem-se com músicos que estão agora a aparecer, para atingirmos outros patamares na nossa música portuguesa.” A colaboração que fez com Bonga, em África minha, single de 2016, é disso exemplo.

Este é um álbum em que letras sexualmente carregadas, acidentes que terminam com “a minha cara nos teus airbags”, convivem com a consciência de classe, onde um “herdeiro de uma luta de outra geração” denuncia discriminação e racismo e conta episódios que “só Deus pode julgar”. Em Meu Deus (2019) expressa pela primeira vez “de forma mais directa” esse “lado crente” e que reconhecemos agora em canções como Casa melhor ou Sala de audiências. “A minha avó era muito religiosa, a minha mãe também e eu passei dois anos num colégio, uma casa de correcção, que era católica. Esses valores mantêm-se até hoje.”

Plutónio aproveita a sua notoriedade para recordar um assunto que teme ter caído no esquecimento: a violência policial, que sempre abordou nas suas letras e que ressurgiu na opinião pública depois da morte de Odair Moniz, cidadão cabo-verdiano baleado por um agente da PSP na Cova da Moura, na Amadora.

“Eu comecei a falar disto em 2000, quando comecei a fazer música. Antes de mim outros rappers fizeram o mesmo. É um assunto que acima de tudo me entristece. Mais do que me deixar chateado, deixa-me triste e deixa-me preocupado”, desabafa. “Não vou ser hipócrita e dizer que nada mudou. Muita coisa mudou, há cada vez mais pessoas indignadas com este tipo de acontecimentos, mas infelizmente não são aquelas que estão em cargos de poder.”

O músico, que recorda a infância passada no Bairro da Cruz Vermelha, conta que já foi vítima de violência policial e sentiu “na primeira pessoa os maus tratos, a arrogância, a humilhação, a falta de respeito”. Tem, inclusivamente, um processo judicial ainda a decorrer na sequência de uma queixa que apresentou contra alguns elementos da GNR de Alcabideche. O batalhão foi, entretanto, substituído.

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É também para dar resposta a problemas como este que não esconde as ambições políticas. Numa entrevista à NiT, em 2019, revelou pela primeira vez a intenção de se candidatar à presidência da Junta de Freguesia de Alcabideche (concelho de Cascais). Mantém essa vontade, por enquanto adiada para se poder concentrar na estreia na maior sala de espectáculos do país.

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